O BigBrain,
reconstituição digital quase à escala celular e em três dimensões do cérebro
humano, ficou esta quinta-feira oficialmente acessível online, gratuitamente, aos investigadores do mundo
inteiro.
Vista
posterior do cérebro humano, com o córtex visual a azul
CORTESIA
INSTITUTO NEUROLÓGICO DE MONTREAL, UNIVERSIDADE MCGILL
Cientistas alemães e canadianos construíram um novo modelo de
referência do cérebro humano cuja resolução é de 20 mícrones (um mícron
equivale à milésima parte de um milímetro) nas três dimensões espaciais.
Este modelo
3D de “ultra-alta resolução”, desenvolvido no âmbito do Projecto Cérebro Humano
da União Europeia, foi apresentado esta
quinta-feira no siteda revista Science.
A título comparativo, a resolução 3D das imagens do cérebro
obtidas por ressonância magnética é de cerca de um milímetro, o que significa
que a resolução do novo modelo é umas 50 vezes superior à de qualquer dos
“atlas” de referência existentes. Vinte mícrones também é mais fino do que um
fino cabelo humano, o que dá uma ideia da escala microscópica da arquitectura
cerebral que o novo mapeamento 3D permite revelar, muito para além das
convoluções visíveis do cérebro ou de algumas das suas estruturas
macroscópicas. Tornam-se, por exemplo, visíveis, pela primeira vez, as diversas
camadas do córtex cerebral, onde se processa o pensamento, ou a organização
interna de estruturas do interior do cérebro tais como o hipocampo ou a
amígdala, cruciais para a memória e as emoções.
Para construir o modelo, Katrin Amunts, da Universidade de
Dusseldorf, Alemanha, e colegas daquela universidade e da Universidade McGill,
Canadá, utilizaram o cérebro de uma mulher morta aos 65 anos — e que “não
apresentava doenças neurológicas nem psiquiátricas, sendo um típico cérebro
dito normal”, explicou Amunts numa teleconferência de imprensa organizada pela Science.
Uma vez incorporado num bloco de parafina, explica a revista em
comunicado, o cérebro em questão foi literalmente cortado em 7404 finíssimas
fatias, de 20 mícrones cada uma, com uma máquina especial chamada micrótomo.
Cada fatia foi a seguir colocada num suporte transparente, submetida a técnicas
de coloração para fazer aparecer as diversas estruturas celulares e finalmente
digitalizada com um scanner de alta resolução. O trabalho demorou cerca de mil
horas e deu origem a um terabyte (mil gigabytes) de informação — “uma massa de
dados mais de 100 mil vezes maior do que a que seria obtida por ressonância
magnética”, disse Alan Evans, um dos co-autores canadianos. “Tivemos de desenvolver
novas ferramentas informáticas para explorar os dados”.
Para reconstituir o cérebro em 3D a partir dessas fatias
digitais, os cientistas tiveram um outro grande problema. Acontece que o corte
introduz sistematicamente distorções e rasgaduras nas fatias de tecido
cerebral. Portanto, para obter uma imagem 3D global coerente, foi preciso
corrigir digitalmente esses “erros” e realinhar os milhares de imagens. Os
cientistas recorreram para tal a imagens de fatias “virtuais” do mesmo cérebro,
obtidas por ressonância magnética antes da operação de corte. O novo cérebro de
referência, diz Amunts, “redefine os mapas tradicionais do início do século XX.
Os célebres atlas cerebrais daquela altura eram desenhos simplificados do
cérebro, baseados numa análise puramente visual dos padrões de organização
celular”.
Graças a este novo “roteiro”, diz a equipa, torna-se possível,
no futuro, sobrepor diversos tipos de dados sobre o cérebro — da genética aos
receptores nervosos à superfície dos neurónios, das ligações entre microestruturas
cerebrais às funções cognitivas e ao comportamento. O nível de resolução
anatómica agora atingido, argumentam, vai permitir perceber as bases
neurobiológicas da cognição, da linguagem, das emoções — mas também, no outro
extremo da escala, analisar a utilização pelas diversas áreas cerebrais dos
vários neurotransmissores que medeiam a comunicação neuronal. E mais:
sobrepondo a este novo modelo os mapas de ligações nervosas de alta resolução
que têm vindo a ser obtidos com as mais recentes técnicas de ressonância
magnética — o chamado conectoma humano — irá ser possível estudar, com um nível
de pormenor sem precedentes, a conectividade cerebral. Os cientistas tencionam
também medir a espessura das camadas do córtex, com vista a ser possível estudar
a sua evolução ao longo do tempo, nomeadamente nas doenças neurodegenerativas
como a doença de Alzheimer.
“Este é o primeiro modelo realista que mostra as células e todas
as estruturas do cérebro humano. O BigBrain vai permitir abordar questões que
até agora estavam fora do nosso alcance porque não tínhamos coordenadas
cerebrais ao nível celular”, frisou Karl Zilles, co-autor alemão. (De facto,
certos tipos de neurónios, com dimensões superiores aos 20 mícrones, são
visíveis nas imagens). “Vamos ser capazes de explorar as estruturas profundas
que não era possível ver nas imagens de ressonância magnética”, diz Evans. Será
preciso, referem, repetir o trabalho com mais cérebros, porque a anatomia
cerebral varia entre pessoas. Este é um primeiro passo, frisam.
Quanto à ferramenta que se encontra online,
“os cientistas podem fazer download da totalidade dos dados, seja por fatias,
seja por conjuntos 3D de 100 a 400 mícrones”, disse ao PÚBLICO Claude Lepage, o
co-autor canadiano que preparou a nosso pedido as imagens que aqui publicamos.
“Também é possível navegar online no atlas 3D”.
=Público=
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