Há milhares,
talvez milhões, de crianças abandonadas na cidade. Miúdos e miúdas dos 8 aos
25, quase invariavelmente toxicodependentes, que foram violentadas e/ou
expulsas pelos pais. Snifam cola, não só porque dá pedra, mas também porque
atenua a fome. A CRÓNICA do enviado especial da VISÃO ao
Cairo
O Cairo é um
enorme caos - e dizem-me que estou cheio de sorte. Há relativamente pouca gente
na rua, os bancos abriram ontem pela primeira vez desde quarta-feira passada,
há ainda muitas lojas de montras fechadas, as pirâmides estão vazias,
circula-se maravilhosamente, garantem-me. Certo, a Universidade do Cairo tem
carros blindados à porta, os acessos à famosa praça Tahrir - o berço da
revolução, para os que ainda acreditam na revolução - estão condicionados com o
mesmo tipo de veículos, e, de quando em vez, vêem-se dez enormes carrinhas de
polícia mal estacionadas de seguida.
Mas, durante
o dia, os 'checkpoints' raramente param alguém e o trânsito flui como nunca.
"Ah, Se o Cairo fosse sempre assim...", diz-me, num suspiro, Teresa,
que se ofereceu para me ajudar e com quem compartilho o táxi, enquanto
procuramos as marchas da Irmandade Muçulmana, que acabarão por ser canceladas
(à exceção de uma, mas isso contarei no papel...) "Eu, normalmente,
consigo fazer uma reunião por dia...", conta-me.
Já este
vosso interlocutor fez três entrevistas, ontem. O ratio entrevista/dia mais baixo alguma vez
conseguido pelo mais preguiçoso dos repórteres da humanidade. T-R-Ê-S. Os
serviços da cidade, as lojas, os intermediários da comunicação, começam a
trabalhar às dez da manhã. A cidade é gigantesca: 450 quilómetros quadrados de
área, 18 milhões de habitantes, "toc-tocs" conduzidos por miúdos de
seis anos (não é preciso carta para os "toc-tocs"), milhares de
micro-'buses' privados (muitos sem porta e alguns até sem parte do telhado) e
um total desrespeito pelas regras do trânsito (ontem, vi pelo menos três
acidentes menores, mas perfeitamente evitáveis).
E agora, com
o recolher obrigatório a ser rigorosamente cumprido (a punição é uma noite de
terror, versão violenta de um interrogatório qualquer de uma série americana
famosa de cujo nome não me lembro mas que mete luzes), pelas seis, quase toda a
gente começa a regressar a casa - e mais uma vez, a exceção são os membros da
Irmandade Muçulmana, que regressam em grupo.
Depois, confesso
que me acho excessivamente bem instalado. O Fairmont Nile Hotel é um
estabelecimento de cinco estrelas, e o quarto tem um dossel de cabedal negro
que ocupa toda a parede, um enorme sofá, uma esplêndida secretária, e o
inevitável HD, com cento e poucos canais, a maioria dos quais em árabe. Do meu
15º andar tenho vista para um dos berços da humanidade: o Nilo. Não me
interpretem mal, foi com a melhor das intenções que me colocaram aqui (e foi
até uma exceção, porque o dinheiro não abunda): o Cairo é uma cidade perigosa,
a esta altura. Ainda ontem, se contaram mais 38 mortos, em circunstâncias por
esclarecer ("irmãos" que tentaram libertar outros "irmãos"
da cadeia"; ou que morreram asfixiados dentro de uma carrinha da polícia;
ou que tentaram fugir, mataram um guarda prisional e foram mortos numa ação de
reação espontânea - o leitor que escolha a versão).
E os hotéis
mais caros têm sempre fama (merecida, porque são sempre aqueles onde as
polícias mais rapidamente acorrem, em caso de necessidade) de ser os mais
seguros - é assim na 'downtown' do Cairo, em Harare ou em Sandton, Joanesburgo
(também têm fama de ser os mais escutados de todos - e também é merecida, mas
isso é outra história...).
No entanto,
face à pobreza que corre lá fora, conto mudar de sítio amanhã: uma alemã,
conhecida de gente amiga na chancelaria portuguesa, oferece-me um quarto mais
modesto a um preço mais modesto (O Fairmont custa mais ou menos 130 euros por
noite - porque, à mingua, está de saldos...). Sinto-me mal, portanto. Porquê?
É Teresa
quem me conta: há milhares, talvez milhões de crianças abandonadas na cidade.
Miúdos e miúdas dos 8 aos 25, quase invariavelmente toxicodependentes, que
foram violentadas e/ou expulsas pelos pais. Snifam cola, não só porque dá
pedra, mas também porque atenua a fome.
Fazem o
mesmo com o tramadol, um analgésico opiáceo clinicamente usado para tratar
dores severas (o que faz sentido: eles têm dores severas.). Vivem de esquemas
de rua e, por vezes, desaparecem por semanas: quando se deu a revolução de 2011,
ninguém os viu por um longo período: uma gigantesca acumulação de gente é
sempre uma ocasião para quem sabe fazer dinheiro: "trabalhos de levar e
trazer; venda de chá ou café, e, à medida que vão crescendo, prostituição e
tráfico de drogas", conta-me Teresa, olhos azuis, vigor nortenho.
Consoante o género, explica.
É um dos
grandes mistérios da cidade: onde estão as suas crianças mal-amadas? Desde o
início dos protestos, a 28 de Junho que desapareceram. Talvez tenham ido para o
sit-inn de Nasr City, onde havia a possibilidade de ganhar algum. Talvez para o
do zoo do Cairo. Talvez - é o rumor que corre por aqui - tenham sido aliciadas,
por tuta e meia, para os comícios da Irmandade. "Roupas, algum
dinheiro...".
Talvez lhes
tenham cortado um dedo, por roubarem. Talvez. Ou talvez não. Teresa não
sabe. Desde vinte e poucos de junho, uma semana antes da deposição de
Morsi, que a sua ONG não sai para a rua. Havia rumores de que as ambulâncias
transportavam armas para a Irmandade Muçulmana. Os carros das visitas noturnas
da sua organização têm uma mini-enfermaria - e ninguém quis arriscar serem
confundidos com traficantes de material bélico...
=Visão=
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