O
governo da Venezuela decidiu abrir um inquérito para investigar as causas da
morte de Hugo Chavez, ocorrida em 5 de março. O motivo é que crescem as
suspeitas de que o líder bolivariano foi assassinado. Segundo o presidente
interino Nicolas Maduro, o câncer do ex-governante poderia ter sido acelerado
por envenenamento. Ele chegou a citar a suspeita morte do líder palestino
Yasser Arafat. “Temos a intuição de que nosso comandante foi envenenado por
forças obscuras que o queriam fora do caminho”, argumenta.
Hugo Chavez foi
diagnosticado com câncer na região pélvica em junho de 2011 e passou por quatro
cirurgias antes de falecer. Não há qualquer indício de que tenha sido
envenenado. Mesmo assim, o governo decidiu convidar cientistas estrangeiros
para analisar o caso com maior profundidade. O procedimento foi o mesmo adotado
pelos palestinos em novembro passado com a exumação do corpo de Yasser Arafat,
após a rede de televisão Al Jazeera divulgar novos documentos sobre o seu
possível assassinato.
A hipótese de envenenamento
foi sugerida pela primeira vez pelo próprio Hugo Chavez em 2011, quando foi
descoberto seu câncer. Na ocasião, ele disse estranhar a doença, já que gozava
de ótimo estado de saúde. Na época, a oposição direitista afirmou que a
suspeita tinha meros objetivos eleitoreiros e a mídia colonizada ridicularizou
a sua “visão conspirativa”. Agora, porém, novas vozes se erguem para insistir
na necessidade de uma apuração independente e rigorosa das reais causas da
morte do líder bolivariano.
Na semana passada, o
presidente da Bolívia, Evo Morales, afirmou que sempre desconfiou do
agravamento da saúde de Hugo Chavez. “Como pôde ter perdido tão rapidamente a
vida? O império sabe como se infiltrar”, disse, lembrando que Fidel Castro já
escapou de várias tentativas de assassinato. No mesmo rumo, a jornalista
estadunidense-venezuelana, Eva Golinger, que reside em Nova Iorque, garante que
os EUA há muita tramavam o assassinato do líder bolivariano, o que justificaria
a imediata abertura de um inquérito.
Em entrevista ao repórter
Dario Pignotti, publicada no jornal argentino Página/12 e traduzida no sítio Carta Maior, o
embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, ex-secretário executivo do Itamaraty,
avaliou que o assunto merece realmente um tratamento mais cuidadoso. Vale
conferir as suas ponderações:
***
Washington
considerou absurda a suspeita de que Chavez tenha morrido vítima de uma
enfermidade inoculada. Certamente a hipótese soa algo exagerada, mas você a
descartaria por completo?
Não estou em condições de
falar sobre o que ocorreu concretamente, mas o presidente Maduro falou do tema,
segundo ouvi, e prometeu investigar. Ele deve saber por que disse isso e se
houver alguma desconfiança por parte do governo venezuelano este pode adotar a
decisão que lhe pareça mais conveniente. Os estados têm soberania para decidir
o que fazer. Não afirmou nada, estou especulando.
Os que colocaram em dúvida
o que causou a morte de Arafat (suposto assassinato com substâncias
radioativas) foram desqualificados em 2004, quando ele morreu. Passados alguns
anos, isso que parecia um absurdo hoje não é mais e os que foram
ridicularizados não estavam tão equivocados. O passar do tempo às vezes acaba
revelando algumas coisas. Que se investigue.
Maduro
falou de um plano sedicioso com participação estadunidense... O jornalista
Kennedy Alencar informou que Dilma e Cristina se articulam para frear eventuais
golpistas...
Não tenho informação, mas
imagino que haja uma grande preocupação por parte das presidentas para que não
haja um golpe de estado. Isso sempre pode ocorrer, como em 2002. De repente
veio o golpe. Um golpe se articula discretamente. Estão corretas em se
preocupar se têm informações. Mas creio que isso seja difícil no curto prazo.
No médio ou longo prazo, aí já não sei. É importante que Brasil e Argentina
estejam vigilantes.
Desestimular eventuais
movimentos golpistas é importante. Juntas, elas podem influir poderosamente. O
apoio delas ao governo democrático é necessário. Igualmente acredito que a
transição para as eleições está assegurada. Haverá estabilidade no curto prazo,
o problema é o longo prazo.
Se
tiveram coragem de tentar um golpe contra Chavez, porque não tentariam de novo
agora, sem ele?
Claro, isso é lógico. É
preciso levar em conta que a sociedade venezuelana está fraturada, os programas
sociais levaram à conscientização das massas e, ao mesmo tempo, provocaram uma
reação das classes altas e médias altas. As minorias sabem que pelas urnas é
difícil chegar ao poder e aparece aí a tentação permanente de fazê-lo por fora
das urnas.
Não sei com certeza se há
setores militares fortes com planos golpistas, mas se há militares que não
gostam do chavismo isso não me surpreenderia. Isso ocorre com todas as elites.
Por isso, considero importante que existam milícias populares dispostas a
defender o governo para compensar o poder dos militares.
O
novo secretário de Estado, John Kerry, se veste de pomba. Será ele menos hostil
do que Hillary?
Parece-me quase impossível
ser mais hostil que Hillary, mas a política externa dos EUA transcende a
característica pessoal de seus funcionários. Há um princípio permanente que é
castigar, ainda que muitos anos depois, os países que não se enquadram nos
desígnios de Washington. Quando algum país não obedece a esse enquadramento, e
a Venezuela fez isso, será vítima de uma política que eu chamaria de vingativa.
Lembro quando Bush invadiu
o Iraque por muitas coisas. Para ele, havia um sentimento pessoal. Bush chegou
a dizer que Saddam quis matar seu pai. O mesmo ocorre com o Irã, porque eles
invadiram a embaixada e, pior, os iranianos tiveram a audácia de dar os nomes
dos informantes iranianos que trabalhavam com a CIA. Isso, Washington nunca
perdoou. O mesmo se aplica a Venezuela. Creio que Washington nunca perdoará as
atitudes de Chavez.
Soberania
equivale e irreverência...
A Venezuela foi uma
província petroleira dos EUA durante décadas. Na 2ª Guerra foi maior
fornecedora de petróleo dos aliados. Tudo isso deu origem a uma classe
dominante muito ligada ao negócio petroleiro e a Washington. Colômbia e
Venezuela são fundamentais para o sistema norte-americano, no Mediterrâneo
norte-americano. Chavez acabou com tudo isso. Deu às costas aos Estados Unidos
e se voltou ao Brasil, ingressou no Mercosul e rechaçou a ALCA. Isso, para os
EUA, é imperdoável.
Para
a direita, o chavismo morrerá com ele.
A dimensão de Chavez foi
imensa, mas não considero adequado dizer que tudo era fruto do carisma dele. Um
autor alemão que viveu nos EUA dizia que as pessoas não chegavam ao poder
porque tem carisma, o poder é que lhes dá carisma. Quando Chavez chegou ao
poder em 1999, não tinha a grande dimensão internacional que chegou a ter, na
medida em que foi desenvolvendo seu projeto. Agora, é preciso ver com Maduro
amadurece [risos].
O
cesarismo, talvez inevitável, do modelo bolivariano agrava o vazio causado pela
morte do líder?
Os meios de comunicação dão
muito valor à atuação do presidente ou do primeiro-ministro, supervalorizam a
pessoa, como se ela fosse imprescindível. É falso. Ninguém governa sozinho,
governa-se porque se representa um conjunto de setores. Isso ocorre nas
democracias liberais e nas ditaduras. Por tanto, é um equívoco achar que o
chavismo é só a presença de Chavez e não ver que esse fenômeno teve um respaldo
enorme dos setores populares.
Dizer que Chavez era tudo
foi mentira desses meios, que também inventaram que a revolução não é
democrática. Na Venezuela de Chavez houve mais eleições que aqui no Brasil,
como Lula observou. Não há notícias de jornalistas ou opositores presos. Se
houvesse, seria notícia permanente. Essa imprensa criou a fantasia de que a
revolução é um sistema baseado numa pessoa e isso é falso.
A
longa agonia de Chavez permitiu que Maduro se afiançasse como seu sucessor?
Espero que sim. Não é fácil
saber qual será sua habilidade para manter dentro do projeto os setores
populares, partidos e forças armadas.
Sendo
alto representante do Mercosul (até julho de 2012), você pode conversar em
profundidade com Chavez?
Com Chavez falei poucas
vezes. Ele citava constantemente um livro meu que ele considerava muito
importante.
Parece
estar em marcha um ataque preventivo contra Maduro quando os conservadores
anunciam que deverá haver um “inevitável” ajuste do gasto público.
A mídia internacional e os
organismos financeiros internacionais repetem em coro que é preciso fazer um
ajuste, controlar a inflação ou então virá uma catástrofe. Tudo isso é falso.
Basta olhar para os EUA onde nunca se fala disso e onde há déficits comerciais
e fiscais absurdos. Lá não se pede isso, aqui sim. É uma religião disfarçada de
discurso econômico global onde toda a política social é chamada de populismo.
No Brasil falam do lulopetismo.
As
políticas sociais destes 14 anos de Chavez são conquistas irreversíveis?
Não creio. No Chile havia
um processo avançado e, com o golpe de73, se retrocedeu até na reforma agrária.
Na Argentina ocorreu o mesmo com o golpe de 1976. Se a direita volta é para
retomar o poder e terminar com as políticas públicas, com a redistribuição de
renda. Tudo começa com as campanhas nos meios de comunicação, dizendo que
chegou a modernidade, que está tudo melhor, que o populismo está dizendo adeus.
Na Venezuela esse discurso
pode começar a ser utilizado com a volta das classes abastadas, para
desqualificar os programas de saúde, os gastos do Estado com alfabetização,
para retirar recursos da Universidade das Forças Armadas, das missões
(programas sociais do governo).
Capriles (principal
opositor nas eleições de outubro de 2012) teve mais de 40% dos votos. Esses
votos não são só das elites. Há pessoas pobres beneficiadas pelos programas
sociais que são ideologicamente conservadoras. Eu creio que essas conquistas
não possam ser entendidas como irreversíveis. Por isso as classes dominantes
querem voltar ao governo, para reverter esses avanços.
***
T. M.
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