Um pouco de doutrina Cristã
Os cinco solas são frases latinas que surgiram durante a Reforma Protestante e
princípios fundamentais da Reforma Protestante em contradição com o ensinamento
da Igreja Católica
Romana da época. A palavra latina "sola" significa
"somente" em Português. Os cinco solas sintetizam os credos
teológicos básicos dos reformadores, pilares os quais creram ser essenciais da
vida e prática cristã. Todos os cinco implicitamente rejeitam ou se contrapõe
aos ensinamentos da então dominante Igreja Romana, a qual tinha na mente dos
reformadores usurpado atributos divinos ou qualidades para a Igreja e sua
hierarquia, especialmente seu superior, o Papa. São eles:
As doutrinas dos cinco solas da Reforma: Sola Scriptura, Solus Christus,
Sola Gratia, Sola Fide e Soli Deo Gloria
No dia 31 de
Outubro de 1517, na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg, na Alemanha,
Lutero afixou as suas 95 teses que acabaram provocando o grande movimento
religioso, conhecido como a Reforma do Século XVI. Nelas Lutero convidava os
interessados a debater a questão das indulgências (que eram vendidas para a
construção da Basílica de S. Pedro, em troca de perdão de pecados) e os males
que esse tráfico religioso podia acarretar. Era costume na época afixar em
lugares públicos temas ou teses para debate e convidar os interessados para
discuti-los. Embora ninguém tivesse comparecido para o debate, em pouco tempo
toda a Alemanha conhecia as teses de Lutero, que lhe custaram a bula de
excomunhão, mas que representaram também o começo da obra de purificação da
Igreja e seu retorno à verdade.
Em suas teses,
Lutero questionava o poder (ou mesmo a intenção) do Papa de perdoar pecados ou
de isentar alguém de penas, a não ser aquelas por ele mesmo impostas. Negava
que esse perdão (de penas ou penitências) pudesse se estender aos que já haviam
morrido e que, porventura, estivessem no purgatório. Para ele, só o
arrependimento, seguido de atos de amor e penitência, com ou sem carta de
perdão (indulgência) podia realmente perdoar pecados. Destacava o valor da
Palavra de Deus, a qual não deveria ser silenciada em benefício da pregação das
indulgências. A intenção do Papa, dizia, deve ser esta: se a concessão dos
perdões - que é matéria de pouca importância - é celebrada pelo toque de um
sino, com uma procissão e com uma cerimônia, então o Evangelho - que é a coisa
mais importante - deve ser pregado com o acompanhamento de cem sinos, de cem
procissões e de cem cerimônias (tese 55) e, ainda, o verdadeiro tesouro da
Igreja é o sacrossanto Evangelho da glória e da graça de Deus (tese 62). Negava
que a cruz adornada com as armas papais (que era carregada pelos vendedores de
indulgências) tivesse o mesmo efeito que a cruz de Cristo (tese 79). Muitas
outras questões foram levantadas nas teses, as quais acabavam batendo na
própria autoridade do Papa e na lisura de suas intenções. Lutero afirmava: Essa
licenciosa pregação dos perdões torna difícil, mesmo a pessoas estudadas,
defender a honra do Papa contra calúnia, ou pelo menos contra as perguntas
capciosas dos leigos. Esses perguntam: Por que o Papa não esvazia o purgatório
por um santíssimo ato de amor e das grandes necessidades das almas; isto não
seria a mais justa das causas, visto que ele resgata um número infinito de
almas por causa do sórdido dinheiro dado para a edificação de uma basílica que
é uma causa bem trivial? ... Que misericórdia de Deus e do Papa é essa de
conceder a uma pessoa ímpia e hostil a certeza, por pagamento de dinheiro, de
uma alma pia em amizade com Deus, enquanto não resgata por amor espontâneo uma
alma que é pia e amada, estando ela em necessidade?... As riquezas do Papa hoje
em dia excedem muito à dos mais ricos Crassos; não pode ele então construir uma
basílica de S. Pedro com seu próprio dinheiro, em vez de fazê-lo com o dinheiro
dos fiéis? ... Abafar esses estudados argumentos dos fiéis apelando
simplesmente para a autoridade papal em vez de esclarecê-los mediante uma
resposta racional, é expor a Igreja e o Papa ao ridículo dos inimigos e tornar
os cristãos infelizes (teses 81, 82, 84, 86 e 90).
Com essas e
outras proposições Lutero alcançou mais do que podia imaginar. Atingiu o ponto
crucial do problema: a situação de distanciamento do Evangelho em que se
encontrava a Igreja. Os males da Igreja não eram apenas os seus desvios morais,
econômicos e políticos, que a colocavam em descrédito perante o povo. Seu
problema principal, responsável também por estes, era o afastamento das
doutrinas fundamentais da Palavra de Deus. A Reforma trouxe a Igreja de volta
às Escrituras e ao Evangelho pregado pelos apóstolos. O próprio Lutero, de
início, não estava totalmente livre dos erros pregados por sua Igreja, como
muito bem atesta sua crença no purgatório (teses 10, 11, 15, 16, 17, 22, etc),
e no valor da penitência (sofrimento) e do perdão do Papa para certos pecados
(teses 6, 7, 8,12, 34, 38, 40, etc.). Foi o estudo da Bíblia que revelou quão
longe a Igreja estava afastada da verdade e a trouxe de volta à pureza de sua
crença primitiva. A Reforma restituiu à Igreja a crença em doutrinas chaves,
que se tornaram essenciais para a sua pregação e para distingui-la dos erros
que continuaram e ainda são mantidos pela Igreja Romana até os nossos dias. É a
importância dessas doutrinas, conhecidas por sua designação latina Sola
Scriptura, Solus Christus, Sola Gratia, Sola Fide e Soli Deo Gloria, que
queremos apresentar, ainda que de forma breve, neste estudo.
1. Sola
Scriptura - "Somente a Escritura", ou a autoridade e suficiência das
Escrituras.
Para os
reformadores, somente a Escritura Sagrada tem a palavra final em matéria de fé
e prática. É o que ficou consubstanciado nas Confissões de Fé de origem
reformada. A Confissão de Fé de Westminster, que adotamos, afirma: Sob
o nome de Escritura Sagrada, ou Palavra de Deus escrita, incluem-se agora todos
os livros do Velho e do Novo Testamento, ... todos dados por inspiração de Deus
para serem a regra de fé e de prática... A autoridade da
Escritura Sagrada, razão pela qual deve ser crida e obedecida, não depende do
testemunho de qualquer homem ou igreja, mas depende somente de Deus (a mesma
verdade) que é o seu autor; tem, portanto, de ser recebida, porque é a palavra
de Deus... O Velho Testamento em Hebraico... e o Novo Testamento em Grego...,
sendo inspirados imediatamente por Deus e pelo seu singular cuidado e providência
conservados puros em todos os séculos, são por isso autênticos e assim em todas
as controvérsias religiosas a Igreja deve apelar para eles como para um supremo
tribunal... O Juiz Supremo, pelo qual todas as controvérsias religiosas têm de
ser determinadas e por quem serão examinados todos os decretos de concílios,
todas as opiniões dos antigos escritores, todas as doutrinas de homens e
opiniões particulares, o Juiz Supremo em cuja sentença nos devemos firmar não
pode ser outro senão o Espírito Santo falando na Escritura.(I,
2,4,8,10). (Leia a CFW)
A Igreja
Católica Romana também aceita as Escrituras como Palavra de Deus, mas não só as
Escrituras. Ela acredita que as decisões da Igreja através dos seus concílios e
do Papa, quando fala oficialmente (ex cathedra) em matéria de fé e de moral,
são igualmente a palavra de Deus, infalível. É o que se chama de Tradição da
Igreja. Sobre a autoridade da Igreja e do Papa, assim diz um autor católico:
"Cristo deu à Igreja a tarefa de proclamar sua Boa-Nova (Mt 28, 19-20).
Prometeu-nos também seu Espírito, que nos guia "para a verdade" (Jo
16,13). Este mandato e esta promessa garantem que nós, a Igreja, jamais
apostataremos do ensinamento de Cristo. Esta incapacidade da Igreja em seu
conjunto de extraviar-se no erro com relação aos temas básicos da doutrina de
Cristo chama-se infalibilidade... A infalibilidade sacramental da Igreja é
preservada pelo seu principal instrumento de infalibilidade, o Papa. A
infalibilidade que toda a Igreja possui, pertence ao Papa dum modo especial. O
Espírito de verdade garante que quando o Papa declara que ele está ensinando
infalivelmente como representante de Cristo e cabeça visível da Igreja sobre
assuntos fundamentais de fé ou de moral, ele não pode induzir a Igreja a erro.
Esse dom do Espírito se chama infalibilidade papal. Falando da infalibilidade
da igreja, do Papa e dos Bispos, o Concílio Vaticano II diz: "Esta
infalibilidade, da qual quis o Divino Redentor estivesse sua Igreja dotada... é
a infalibilidade de que goza o Romano Pontífice, o Chefe do Colégio dos Bispos,
em virtude de seu cargo... A infalibilidade prometida à Igreja reside também no
Corpo Episcopal, quando, como o Sucessor de Pedro, exerce o supremo
magistério" (Lúmen Gentium, nº 25)[1]
Sobre a relação
entre as Sagradas Escrituras e a Tradição, diz esse mesmo autor: O Concílio
Vaticano II descreve a Sagrada Tradição e as Sagradas Escrituras como sendo
"semelhante a um espelho em que a Igreja peregrinante na terra contempla a
Deus" (Constituição Dogmática Dei Verbum, sobre a Revelação Divina, nº 7).
A palavra revelada de Deus chega até você mediante palavras faladas e escritas
por seres humanos. A Escritura Sagrada é a Palavra de Deus "enquanto é
redigida sob a moção do Espírito Santo" (Dei Verbum, nº 9). A Sagrada
Tradição é a transmissão da Palavra de Deus pelos sucessores dos apóstolos.
Juntas, a Tradição e a Escritura constituem um só sagrado depósito da palavra
de Deus, confiado à Igreja"(Dei Verbum, nº 10). E mais adiante acrescenta:
A Sagrada Tradição é a transmissão da Palavra de Deus. Esta transmissão é feita
oficialmente pelos sucessores dos apóstolos, e não oficialmente por todos os
que cultuam, ensinam e vivem a fé, tal como a Igreja a entende. (Ibidem).
No dias de
Lutero a Igreja Romana já pensava assim e assim pensa até hoje. Na prática, a
Tradição está acima da Bíblia para o catolicismo. Já que cabe à Igreja
transmitir e interpretar a Bíblia, com igual autoridade e infalibilidade, é a
palavra da Igreja, em última instância, que tem valor. O escritor católico,
acima referido, diz: O Vaticano II fez o que a Igreja docente sempre tem feito:
expressou o conteúdo imutável da revelação, traduzindo-o para formas de
pensamento do povo de acordo com a cultura de hoje. Mas esta "tradução do
conteúdo imutável" não é como que vestir notícias velhas com linguagem
nova. Como afirmou o Vaticano II: "Esta Tradição, oriunda dos Apóstolos,
progride na Igreja sob a assistência do Espírito Santo. Cresce, com efeito, a
compreensão tanto das coisas como das palavras transmitidas... no decorrer dos
séculos, a Igreja tende continuamente para a plenitude da verdade divina, até
que se cumpram nela as palavras de Deus". (Dei Verbum, nº 8).
Pelo Vaticano
II a Igreja deu ouvidos ao Espírito, empenhou-se na sua "tarefa de
perscrutar os sinais dos tempos e interpretá-los à luz do Evangelho"
(Constituição Pastoral Gaudium et Spes sobre a Igreja no Mundo Moderno, nº 4).
Nem sempre é claro aonde o Espírito está nos conduzindo. Mas o terreno no qual
nós, a Igreja, caminhamos adiante da nossa peregrinação é firme: o Evangelho de
Cristo. Nesta etapa da nossa história, um de nossos instrumentos básicos de
Tradição - de transmissão da fé - são os documentos do Vaticano II (Ibidem).
Por este texto
percebe-se que a Igreja Romana arroga a si não só a autoridade de interpretar e
contextualizar a Bíblia, de modo infalível, mas a de continuar a sua revelação.
Por isso a leitura da Bíblia pelos leigos não é vista como necessária; e, em
alguns casos, é tida até como perigosa. A Reforma ensinou o livre exame das
Escrituras. Qualquer pessoa tem o direito e até o dever de examinar, por si
mesma, se o ensino da Igreja está de acordo com as Escrituras. Foi o que fizeram
os crentes de Beréia, pelo que foram elogiados (At 17:11). A Igreja pode errar
e tem errado. A infalibilidade deve ser atribuída apenas ao texto bíblico, não
aos que o interpretam. Em nenhum lugar da Bíblia lemos que a promessa, dada aos
apóstolos, de que o Espírito os conduziria a toda a verdade se estenderia aos
demais líderes da Igreja, em todos os tempos. Jesus prometeu-lhes que o
Espírito não só os guiaria a toda verdade (Jo 16:13), mas lhes ensinaria todas
as coisas e os faria lembrar de tudo o que lhes tinha dito (Jo 14:26). Isto só
poderia aplicar-se a eles, os apóstolos. Só eles ouviram o que Jesus disse para
poder lembrar-se depois, não os bispos nem os papas. A infalibilidade do Papa
(e, por extensão, da Igreja) só foi declarada como dogma em 1870, no Concílio
Vaticano I. Tal dogma, naturalmente, serviu ao propósito de dar
"legitimidade" aos inúmeros ensinos contrários às Escrituras, tanto
os já anteriormente estabelecidos como outros que viriam depois, como a oração
pelos mortos (310), a instituição da missa substituindo o culto (394), o culto
a Maria (431), a invenção do purgatório (503), a veneração de imagens (783), a
canonização dos santos (933), o celibato clerical (1074), o perdão através da
venda de indulgências (1190), a hóstia substituindo a Ceia (1200), a adoração
da hóstia (1208), a transubstanciação (1215), a confissão auricular (1216), os
livros apócrifos como parte do cânon (1546), o dogma da Imaculada Conceição de
Maria (1854) e o dogma da Assunção de Maria (1950), dentre outros.
Lutero se opôs
naturalmente a esse ensino da Igreja. Já nas suas teses proclamava que
comete-se uma injustiça para com a palavra de Deus se no mesmo sermão se
concede tempo igual, ou mais longo, às indulgências do que à palavra de Deus
(tese 54) e que o verdadeiro tesouro da Igreja é o sacrossanto Evangelho da
glória e da graça de Deus (tese 62). Comparava o Evangelho como "redes com
que, desde a antiguidade, se pescam homens de bem" enquanto que as
indulgências eram "redes com que agora se pescam os bens dos homens"
(teses 65 e 66). Mas foi na Dieta de Worms, em 1521, que demonstrou estar
totalmente convencido de que as Escrituras eram a sua única autoridade
reconhecida. Quando perguntado se estava disposto a se retratar das afirmações
que fizera, negando autoridade a certas decisões de alguns concílios, sua
resposta foi: É impossível retratação, a não ser que me provem que estou
laborando em erro, pelo testemunho das Escrituras ou por uma razão evidente;
não posso confiar nas decisões dos concílios e dos Papas, pois é evidente que
eles não somente têm errado, mas se têm contradito uns aos outros. Minha
consciência está alicerçada na Palavra de Deus, e não é seguro nem honesto
agir-se contra a consciência de alguém. Assim Deus me ajude. Amém.
Tanto a autoridade
única como também a suficiência das Escrituras têm sido doutrinas preciosas
para as igrejas reformadas. Só a Escritura e toda a Escritura! Não precisamos
de outra fonte para saber o que devemos crer e como devemos agir. Hoje há uma
tendência para se colocar a experiência humana e supostas revelações do
Espírito no mesmo nível de autoridade das Escrituras, por parte de alguns
grupos evangélicos. Na prática, às vezes essas experiências acabam se tornando
mais desejadas e tidas como mais valiosas do que o próprio ensino das
Escrituras. Tomam hoje o lugar que, no passado, tomava a Tradição. É preciso
que voltemos ao princípio da Sola Scriptura, se queremos ser realmente
reformados em nossas convicções e práticas. A Escritura, e não a nossa
experiência subjetiva, deve ser o nosso critério de verdade. Nossa pregação não
deve visar o que agrada aos homens, mas o que agrada a Deus. Já dizia Lutero
que os tesouros das indulgências eram muito mais populares dos que os tesouros
do Evangelho (teses 63 e 64), e isso, certamente, porque faziam as pessoas se
sentirem bem, aliviadas do sentimento de culpa, pela promessa, ainda que falsa,
de perdão de pecados. Só a pregação da Lei associada ao Evangelho pode
realmente trazer o homem ao arrependimento e ao perdão divino. As Escrituras
são a espada do Espírito. É por elas, e não independente delas, que o Espírito
age. Nossas experiências espirituais só têm valor se forem produzidas pela
persuasão da Palavra.
2. Solus
Christus - "Somente Cristo", ou a suficiência e exclusividade de
Cristo.
O Catolicismo
Romano afastou-se do Evangelho e instituiu o culto a Maria, já em 431, o culto
às imagens, em 787, e a canonização dos santos, em 933. Instituiu também a
figura do sacerdote como vigário de Cristo, a quem devem ser confessados os
pecados e a quem supostamente foi conferido poder para perdoá-los, mediante a
prescrição de penitências. Um dos pontos centrais das teses de Lutero tinha a
ver exatamente com o poder do Papa e dos sacerdotes de perdoar pecados, que ele
questionava, pelo menos no que diz respeito aos mortos. Dizia ele: O Papa não
tem o desejo nem o poder de perdoar quaisquer penas, exceto aquelas que ele
impôs por sua própria vontade ou segundo a vontade dos cânones. O Papa não tem
o poder de perdoar a culpa a não ser declarando ou confirmando que ela foi
perdoada por Deus; ou, certamente, perdoando os casos que lhe são reservados.
Se ele deixasse de observar essas limitações a culpa permaneceria. Os cânones
da penitência são impostos unicamente sobre os vivos e nada deveria ser imposto
aos mortos segundo eles (teses 5, 6 e 8). Mas admitia o sacerdote como vigário
de Deus, perante quem Deus podia perdoar a culpa, mediante humilhação do
penitente ( tese 7). Só mais tarde Lutero se libertou totalmente de alguns
desses ranços de sua formação católica. Nem poderia ser diferente. Quando ele
escreveu as teses, era ainda um monge católico romano.
O que o
catolicismo ensina a respeito de Cristo não é diferente daquilo que professamos
em nossos credos. A encarnação, nascimento virginal, divindade, morte vicária e
ressurreição são cridos e ensinados. O problema é que a Igreja Romana não crê
na suficiência e exclusividade da obra de Cristo para a salvação. Maria é
erigida à posição de intercessora e até co-redentora (não oficialmente, ainda)
e os santos entram também com os méritos de sua intercessão para a obra
salvífica. O autor católico, acima citado, assim se refere a Maria: No seu
livro "Maria em Sua Vida Diária", o teólogo Bernardo Häring
observa: "O Concílio Vaticano II coroou a Constituição Dogmática sobre a
Igreja com um belo capítulo sobre Maria, como protótipo e modelo da Igreja. A
Igreja não pode chegar a entender plenamente a união com Cristo e o serviço a
seu Evangelho, sem um amor e um conhecimento profundos de Maria, Mãe de Nosso
Senhor e nossa Mãe". Com uma visão penetrante na natureza profundamente
pessoal da salvação, o Vaticano II abordou o influxo de Maria em nossas vidas.
Por ser mãe de
Jesus, Maria é a Mãe de Deus. É o que afirma o Vaticano II: "Na Anunciação
do Anjo, a Virgem Maria recebeu o Verbo de Deus no coração e no corpo, e trouxe
ao mundo a Vida. Por isso, é reconhecida e honrada como verdadeira Mãe de Deus
e do Redentor"(Lumen Gentium, nº 53).
Como Mãe do
Senhor, Maria é uma pessoa inteiramente singular. Como seu Filho, ela foi
concebida como ser humano (e viveu toda a sua vida) isenta de qualquer vestígio
do pecado original, isto se chama sua Imaculada Conceição. Antes, durante e
após o nascimento de seu filho Jesus, Maria permaneceu fisicamente virgem. No
final da sua vida Maria foi assunta - isto é, elevada - ao céu, de corpo e
alma; a isso chamamos sua Assunção.
Na qualidade de
Mãe de Cristo, cuja vida vivemos, Maria é também a mãe de toda a Igreja. Ela é
membro da Igreja, mas um membro totalmente singular. O Vaticano II exprime sua
relação conosco como a de um membro supereminente e de todo singular da Igreja,
como seu modelo... na fé e na caridade. "E a Igreja católica, instruída
pelo Espírito Santo, honra-a com afeto de piedade filial como mãe amantíssima"(Lumen
Gentium, nº 53).
Como uma mãe
que aguarda a volta dos seus filhos adultos para casa, Maria nunca cessa de
influenciar o curso de nossas vidas. Diz o Vaticano II: "Ela concebeu,
gerou, nutriu a Cristo, apresentou-o ao Pai no templo, compadeceu com seu Filho
que morria na cruz... Por tal motivo ela se tornou para nós Mãe, na ordem da
graça"(Lumen Gentium, nº 61). "por sua maternal caridade cuida dos
irmãos de seu Filho, que ainda peregrinam na terra rodeados de perigos e
dificuldades, até que sejam conduzidos à feliz pátria"(Lumen Gentium, nº
62).
Essa Mãe, que
viu seu próprio Filho feito homem morrer pelo resto de seus filhos, está
esperando e preparando seu lugar para você. Ela é, nas palavras do Vaticano II,
seu "sinal da esperança segura e do conforto" (Lumen Gentium, nº 68)
(Ibidem)
Com relação aos
santos, diz esse autor: A igreja venera também os outros santos que já estão
com o Senhor no céu. São pessoas que serviram a Deus e ao próximo dum modo tão
notável, que foram canonizados, isto é, a Igreja declarou oficialmente
heróicos, e nos exorta a rezarmos a eles, pedindo sua intercessão por todos nós
junto a Deus. E ainda, A Comunhão dos santos é uma rua de mão dupla:.. o
Vaticano II afirma que, assim como você na terra pode ajudar aqueles que sofrem
o purgatório, assim os que estão no céu podem ajudá-lo na sua peregrinação,
intercedendo por você junto de Deus (Ibidem).
Embora a Igreja
Católica não tenha ainda proclamado oficialmente o dogma de Maria como
co-redentora, o que vem sendo buscado por muitos de seus cultuadores (até
agosto de 1997 o atual papa já havia recebido 4.340.429 assinaturas de 157
países solicitando que ele exercesse o poder da sua infalibilidade para
proclamar o dogma de que "a Virgem Maria é co-redentora, mediadora de todas
as graças e advogada do povo de Deus", cf. http://www.msantunes.com.br/juizo/odesvirt.htm),
na prática ela é assim considerada e com o apoio e ensino explícito do clero.
No boletim diocesano da cidade de Itabuna (BA), assim se expressa Dom Ceslau
Stanula, bispo da diocese: "Maria Co-Redentora - Mês de maio, um dos mais
lindos do ano, a humanidade dedicou a Nossa Senhora. Quase em todas as igrejas
e capelas diariamente neste mês, o povo se reúne para cantar ladainhas e
louvores a nossa Senhora. Nossa Senhora é invocada, venerada e cultuada pelas
razões muito profundas e bíblicas. Maria é a Mãe de Jesus que é Deus, Filho de
Deus nosso Salvador, e portanto ela é a Co-Redentora da humanidade". E
para consusbstanciar sua declaração cita documento do Concílio Vaticano II que
diz: "Assim de modo inteiramente singular, pela obediência, fé, esperança
e caridade, ela cooperou na obra do Salvador para a restauração da vida sobrenatural
das almas. Por tal motivo ela se tornou para nós mãe na ordem da graça".
(LG 61) (http://www.snow.icestorm.net/siteverde/boletim1.htm)
Certamente este
não é o ensino da Bíblia. Ela nos diz que "há um só Deus e um só Mediador
entre Deus e os homens, Cristo Jesus, homem" (1Tm 2:5), que, "por
isso, também pode salvar totalmente os que por ele se chegam a Deus, vivendo
sempre para interceder por eles" (Hb 7:25) e que "não há salvação em
nenhum outro; porque abaixo do céu não existe nenhum outro nome, dado entre os
homens, pelo qual importa que sejamos salvos" (At 4:12). Não precisamos de
intercessão de Maria ou dos santos, nem têm eles qualquer poder para tal. Quem
disse "na casa de meu Pai há muitas moradas... vou preparar-vos
lugar", foi Jesus e não Maria (Jo 14:2). A obra de Cristo é suficiente
para a nossa salvação. Maria e todos os demais crentes só puderam ser salvos
pela graça e mediação eficaz de Cristo. Assim cantou ela: "A minha alma
engrandece ao Senhor, e o meu espírito se alegrou em Deus, meu Salvador, porque
contemplou na humildade da sua serva. Pois, desde agora, todas as gerações me
considerarão bem-aventurada, porque o Poderoso me fez grandes coisas. Santo é o
seu nome" (Lc 1:46-49). Quando o povo de Listra quis adorar a Paulo e
Barnabé, sua resposta foi a seguinte: Senhores, por que fazeis isto? Nós também
somos homens como vós, sujeitos aos mesmos sentimentos, e vos anunciamos o evangelho
para que destas coisas vãs vos convertais ao Deus vivo, que fez o céu, a terra,
o mar e tudo o que há neles (At 14:15). Os verdadeiros santos nunca
reivindicaram qualquer poder, glória ou honra para si mesmos. Certamente é
falsa esta aspiração atribuída a Maria: "Até que eu seja reconhecida no
lugar em que a Santíssima Trindade desejou que eu estivesse, eu não poderei
exercer meu poder totalmente, no trabalho materno de co-redenção e de mediação
universal das graças... (Nossa Senhora a Padre Gobbi, 14/06/80)" [2]
Uma outra
conseqüência do princípio do Solus Christus foi a doutrina que ficou conhecida
como a do "Sacerdócio Universal dos Crentes". Não necessitamos de
outro sacerdote ou mediador entre nós e Deus que não seja o Senhor Jesus
Cristo. Cada um pode chegar-se a Ele diretamente, sem intermediários humanos.
Como diz o autor aos Hebreus: "Tendo, pois, a Jesus, o Filho de Deus, como
grande sumo sacerdote que penetrou os céus, conservemos firmes a nossa
confissão. Porque não temos sumo sacerdote que não possa compadecer-se das
nossas fraquezas; antes, foi ele tentado em todas as coisas, à nossa
semelhança, mas sem pecado. Acheguemo-nos, portanto, confiadamente, junto ao
trono da graça, a fim de recebermos misericórdia e acharmos graça para socorro
em ocasião oportuna" (Hb 4:14-16).
A Reforma
trouxe à Igreja o Evangelho simples dos apóstolos, centrado na suficiência e
exclusividade da obra de Cristo para a salvação. A velha confissão de Paulo foi
de novo a confissão dos reformadores: "Porque decidi nada saber entre vós,
senão a Jesus Cristo e este crucificado" (1Co 2:2)
3. Sola
Gratia - "Somente a Graça", ou a única causa eficiente da salvação
Intimamente
ligado ao princípio do Solus Christus está o da Sola Gratia. A Bíblia ensina
que o homem é totalmente incapaz de fazer qualquer coisa para a sua salvação.
Está espiritualmente morto em delitos e pecados. Um morto nada pode fazer sem
que antes seja vivificado. Paulo ensina como se operou a nossa salvação:
"Ele vos deu vida, estando vós mortos nos vossos delitos e pecados ... e
estando nós mortos em nossos delitos, nos deu vida juntamente com Cristo, -
pela graça sois salvos" (Ef 2:1,5). Foi "pela graça", diz Paulo,
que fomos vivificados, estando nós mortos. A doutrina da inabilidade total do
homem para salvar-se foi um dos marcos da Reforma. No seu livro De Servo
Arbitrio ("A Escravidão da Vontade"), Lutero nega que o homem tenha
livre arbítrio, ou seja, a capacidade de escolher entre o bem e o mal, depois
da queda. Vendido ao pecado, o homem não tem mais a habilidade para escolher o
bem, pois sua vontade está presa ou escravizada pelo pecado. Só pode e só quer
escolher o pecado. A salvação é, portanto, exclusivamente ato da livre e
soberana graça de Deus. Não só Calvino, como geralmente se pensa, mas também
Lutero e os demais reformadores deram grande ênfase na necessidade da graça
soberana de Deus para a salvação do homem. É por isso que a eleição divina é
incondicional.
Todavia, não
era isso que a Igreja ensinava nos dias da Reforma. O catolicismo, seguindo o
pensamento de Pelágio e, principalmente, de Tomás de Aquino, acreditava e ainda
acredita que o homem não está totalmente corrompido em sua vontade e natureza.
Ele precisa da graça de Deus, mas não no sentido regenerador, como cremos.
Segundo a teologia romana o homem pode conhecer a Deus através de sua razão,
conhecimento que é chamado de Teologia Natural. O documento 1806 (Denzinger) do
Concílio Vaticano I (1869-1870) diz: "(Contra os que negam a teologia
natural) - Qualquer que disser que o Deus verdadeiro, nosso Criador e nosso
Senhor, não pode ser conhecido com verdadeira exatidão pelas coisas que foram
feitas, pela luz natural da razão humana, seja anátema (cf. 1785) (Cf.
Denzinger 1810, 1812, 1816) (cf F.H. Klooster, Introduction to Systematic
Theology (Grand Rapids: Calvin Theological Seminary, 1985, pp. 182-183).
No artigo
católico que temos citado, encontramos como eles entendem o pecado original:
Com exceção de Jesus Cristo e de sua Mãe Maria, todo ser humano nascido neste
mundo está contaminado pelo pecado original. Como São Paulo declara em Rom, 5,
12: "Por meio de um só homem o pecado entrou no mundo e pelo pecado a
morte, e assim a morte passou a todos os homens porque todos pecaram".
Embora continue
a mostrar que há o mal neste mundo, a Igreja não está sugerindo que a natureza
humana esteja corrompida. Ao contrário, a humanidade é capaz de fazer muito
bem. Não obstante sintamos uma "tendência para baixo", ainda mantemos
o controle essencial sobre nossas decisões. Permanece a vontade livre. E - o que
é mais importante - Cristo, nosso Redentor, venceu o pecado e a morte pela sua
morte e Ressurreição. Essa vitória cancelou não apenas nossos pecados pessoais,
mas também o pecado original e seus propalados efeitos. A doutrina do pecado
original, portanto, entende-se melhor como um escuro pano de fundo contra o
qual pode ser aplicada, fazendo contraste, a brilhante redenção adquirida para
nós por Cristo, nosso Senhor. [3]
Assim, o
catolicismo estabeleceu os sacramentos da Igreja (que para eles são sete e não
dois) como meios pelos quais o problema do pecado pode ser tratado e a graça
recebida. A Igreja torna-se medianeira ou mediadora da graça de Deus. Daí o
ensino de que "fora da Igreja não pode haver salvação", entendida
"Igreja" aqui não como o número total dos eleitos (sentido
espiritual) mas como a organização (visível) que, supostamente, detém o poder
de distribuir e administrar a graça de Deus. No século XVI o cardeal Roberto
Belarmino assim descreveu a Igreja Romana: "A única e verdadeira Igreja é
a comunidade de homens reunidos pela profissão da mesma fé cristã e pela
comunhão dos mesmos sacramentos, sob o governo dos legítimos pastores e
especialmente do vigário de Cristo na terra, o Romano Pontífice" (Ibidem).
Mas vem de longa data esse ensino. Assim se expressaram alguns dos papas do
passado: Papa São Gregório I (590-604): "Agora a Santa Igreja Universal
proclama que apenas dentro dela Deus pode ser realmente adorado, e que fora
dela ninguém pode ser salvo." Papa Inocêncio III (1198-1216): "Realmente,
existe apenas uma Igreja Universal dos fiéis, fora da qual ninguém é salvo.
(...) Cremos com nossos corações e confessamos com nossos lábios que existe
apenas uma Igreja, não a dos hereges, mas a Santa Igreja Católica e Apostólica
Romana, fora da qual acreditamos que ninguém pode ser salvo." Papa
Bonifácio VIII (1294-1303): "Nós declaramos, dizemos, definimos e
proclamamos que é absolutamente necessário para a salvação de toda a criatura
humana estar sujeita ao Pontífice Romano." Papa Eugênio IV (1431-1439):
"A Santa Igreja Romana acredita, professa e prega que todo aquele que
permanece fora da Igreja Católica, não apenas os pagãos, mas também judeus,
heréticos e cismáticos, não tomarão parte da vida eterna, mas irão para o fogo
perpétuo, que foi preparado para o diabo e seus anjos, a não ser que antes da
morte eles se unam à Igreja. É de tal modo importante a união com o corpo da
Igreja, que seus sacramentos são úteis para a salvação apenas para aqueles que
permanecem dentro dela, e jejuns, esmolas e outros trabalhos piedosos, assim
como a prática da guerra cristã, só proporcionarão recompensas eternas a eles
tão-somente." Papa Leão X (1512-1517): "Onde a necessidade de
salvação se referir a todos os fiéis de Cristo, deverá estar sujeita ao Pontífice
Romano, como nos foi ensinado pelas Sagradas Escrituras, pelo testemunho dos
santos padres e pela constituição do nosso predecessor de feliz memória,
Bonifácio VIII." [4]
E não pensemos
que a Igreja Romana mudou. Recentemente o cardeal Joseph Ratzinger, da Congregação
para a Doutrina da Fé, o novo nome da velha "Congregatio Propaganda
Fide", mais conhecida como Inquisição, "causou escândalo" por
afirmar na declaração Dominus Iesus, aprovada pelo papa, que "a Igreja
Católica é o verdadeiro caminho para a salvação" (Folha de S. Paulo, de
27/09/2000, p. E8). Os mais ingênuos, que acreditam na sinceridade do diálogo
do Vaticano com as outras religiões (ecumenismo), consideraram isso um
retrocesso. Nada mais óbvio para a Igreja Católica, que jamais abdicará desta posição,
sob pena de admitir seus erros e reconhecer-se falível.
É por essa
razão que a Igreja se julgava no direito de distribuir o perdão de pecados
através da venda das indulgências, pela prescrição de penitências e outros atos
de contrição. Foi a Reforma que trouxe à luz a verdade da Sola Gratia, ensinada
nas Escrituras. Onde a total inabilidade do homem for negada e os pretensos
méritos humanos forem cridos, não haverá verdade bíblica. O homem nem mesmo
pode cooperar com a graça regeneradora do Espírito. A salvação não é, em nenhum
sentido, obra humana. Não são os métodos ou técnicas humanas que operam a
salvação, mas tão somente a graça regeneradora do Espírito. A fé não pode ser
produzida por uma natureza decaída e morta. "Pois nós também, outrora, éramos
néscios, desobedientes, desgarrados, escravos de toda sorte de paixões e
prazeres, vivendo em malícia e inveja, odiosos e odiando-nos uns aos outros.
Quando, porém, se manifestou a benignidade de Deus, nosso Salvador, e o seu
amor para com todos, não por obras de justiça praticadas por nós, mas segundo
sua misericórdia, ele nos salvou mediante o lavar regenerador e renovador do
Espírito Santo, que ele derramou sobre nós ricamente, por meio de Jesus Cristo,
nosso Salvador" (Tt 3:3-5)
4. Sola Fide - "Somente a Fé", ou a
exclusividade da Fé como meio de Justificação.
Falando da
eleição, Paulo argumenta: E, se é pela graça, já não é pelas obras; do
contrário, a graça já não é graça (Rm 11:6). A graça exclui totalmente as
obras. O homem nada pode e nada tem para oferecer a Deus por sua salvação. A
única coisa que lhe cabe fazer é aceitar o dom da salvação, pela fé, quando
esta lhe é concedida. Fé na obra suficiente de Cristo, que lhe é imputada
(creditada em sua conta) gratuitamente. Essa obra consiste na sua vida de
perfeita obediência à lei de Deus, em lugar do homem, obediência que nem Adão
nem qualquer de sua descendência pôde prestar, dada a sua condição de morte
espiritual. Por isso Cristo é chamado de o segundo ou o último Adão (1Co
15:45). Ela consiste também, e principalmente, de sua morte sacrificial em
lugar do pecador eleito, através da qual é pago o preço exigido pela justiça de
Deus para a justificação. A justiça de Deus exige punição do pecado. Ele é
aquele que "não inocenta o culpado" (Ex 34:7). Exige justiça
perfeita. Para que Deus pudesse punir o pecador, mas ao mesmo tempo declará-lo
justo (que é o significado bíblico de justificar), foi preciso que alguém, sem
culpa e com méritos divinos, assumisse o seu lugar. Foi o que o próprio Deus fez
através de Cristo. Assumiu a culpa do pecador eleito e morreu em seu lugar,
satisfazendo assim a justiça de Deus, ofendida pela pecado. Nada menos do que
isso foi suficiente para justificar o pecador. É o que se chama na teologia de
"expiação". Desta forma, Paulo pôde falar em Deus como "aquele
que justifica o ímpio" (Rm 4:5) e da morte de Cristo como a manifestação
da sua justiça, para que ele pudesse ser justo e o justificador daquele que tem
fé em Jesus. Diz ele: "sendo justificados gratuitamente, por sua
graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus, a quem Deus propôs, no
seu sangue, como propiciação, mediante a fé, para manifestar a sua justiça, por
ter Deus, na sua tolerância, deixado impunes os pecados anteriormente
cometidos; tendo em vista a manifestação da sua justiça no tempo presente, para
ele mesmo ser justo e o justificador daquele que tem fé em Jesus" (Rm 3:
24-26). É por isso também que os reformadores chamavam o crente de simul justus
et peccator - ao mesmo tempo justo e pecador.
Esta foi a
doutrina central da Reforma. Lutero, de início, não podia compreender como a
"justiça de Deus se revela no evangelho" ("visto que a justiça
de Deus se revela no evangelho, de fé em fé, como está escrito: O justo viverá
por fé". Rm 1:17). Para ele, a justiça de Deus só poderia condenar o
homem, não salvá-lo. Tal justiça não seria "boas novas" (evangelho).
Só quando compreendeu que a justiça de que Paulo fala nesse texto não é o
atributo pelo qual Deus retribui a cada um conforme os seus méritos (o que implicaria
em condenação para o homem), mas o modo como Ele justifica o homem em Cristo, é
que a luz raiou em seu coração e a verdade aflorou em sua mente. Tornou-se,
então, um homem livre, confiante e certo do perdão dos seus pecados.
Compreendeu o evangelho! O Evangelho é a manifestação dessa justiça de Deus,
que é recebida somente pela fé. Não é produzida pelas obras, pois o homem não
as tem. ("Visto que ninguém será justificado diante dele por obras da lei,
em razão de que pela lei vem o pleno conhecimento do pecado"...
"concluímos, pois, que o homem é justificado pela fé, independentemente
das obras da lei" Rm 3:20,28).
É pela fé que o
justo viverá. Quando Paulo cita esta passagem de Habacuque, ele a usa para
ensinar que é através da fé, e não das obras, que alguém é declarado
justo em Cristo. Isto está mais claro na outra citação em Gl 3:11,
quando ele diz: "E é evidente que, pela lei, ninguém é justificado diante
de Deus, porque o justo viverá pela fé". Cristo é a justiça de Deus
("mas vós sois dele, em Cristo Jesus, o qual se nos tornou, da parte
de Deus, sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção" - 1Co 1:30) e
pela fé nele nós também somos feitos "justiça de Deus" ("Aquele
que não conheceu pecado, ele o fez pecado por nós; para que, nele, fôssemos
feitos justiça de Deus" (2Co 5:21). A fé, todavia, é apenas o meio, dado
pelo próprio Deus, pelo qual essa justiça é imputada ao pecador, não a sua
causa ou motivo. Do contrário, a própria fé seria "obra humana". Per
fidem propter Christum - "pela fé, por causa de Cristo", como deixou
claro a Reforma. A fé não é a base nem a causa meritória da justificação, mas o
meio pelo qual ela é comunicada.
Quão longe
estava a Igreja dessa verdade simples do Evangelho quando ensinava que o perdão
podia ser comprado com dinheiro e a salvação adquirida com o mérito dos santos.
Tetzel, o vendedor das indulgências do Papa Leão X na Alemanha, dizia que "ao
som de cada moeda que cai neste cofre, uma alma se desprende do purgatório e
voa até o paraíso", refrão que seus ridicularizadores rimaram no que em
português equivaleria a "no que a moeda na caixa cai, uma alma do
purgatório sai"("sobald das Geld im Kasten Klingt, di Seele aus dem
fegfeuer springt") [5]
Mas não pensemos que
a Igreja Católica mudou. Ainda agora, neste ano considerado o do Jubileu 2000,
o Vaticano criou novas indulgências para reduzir ou anular as penas dos
pecados. Um "Manual de Indulgência", de 115 páginas, apresenta
algumas das obras que podem aliviar a punição dos pecadores no purgatório,
dentre as quais estão um dia sem fumar, rezar com o Papa em frente à televisão,
ajudar refugiados, orar mentalmente com surdos-mudos, não comer carne, etc, (cf.
artigo "Igreja Católica cria novas indulgências", Folha de S. Paulo
de 19/09/2000), além das que são permanentemente concedidas como visitar o
Vaticano e peregrinar por lugares sagrados. Isto na mesma época em que a Igreja
assinou, juntamente com luteranos da Federação Luterana Mundial, um acordo em
que os dois grupos professam que : " a salvação decorre da graça de Deus e
não das boas obras; só se chega à salvação pela fé; e, embora não levem à
salvação, as boas obras são conseqüência natural da fé" (cf. artigo
"Católicos e luteranos se reconciliam", da mesma edição da Folha de
S. Paulo, já citada). O acordo não é levado a sério pelos que conhecem o
catolicismo e o modo como age, e recebeu críticas inclusive da parte de igrejas
luteranas fiéis à sua origem. É visto apenas como uma manobra para promover o
ecumenismo e, principalmente, para combater o mercantilismo das igrejas
neo-pentecostais, que vêm tirando adeptos das igrejas tradicionais,
principalmente do catolicismo, com sua pregação da "teologia da
prosperidade" (cf. artigo "Acordo visa combater
'mercantilismo'", da referida edição da Folha).
A ênfase na
doutrina da justificação somente pela fé é tão oportuna e necessária agora
quanto nos dias de Lutero, e não só porque o catolicismo não mudou, mas porque
o protestantismo mudou. São poucos os evangélicos hoje que ainda dão ênfase ao
aspecto objetivo da justificação unicamente pela fé. Experiências subjetivas,
avivamentos emocionais, respostas a apelos e outras práticas estão tomando o
lugar da pregação dos temas chaves da Reforma. As doutrinas do pecado original,
da expiação vicária, da eleição incondicional e da justificação somente pela fé
estão sendo negadas hoje por muitos evangélicos que buscam uma acomodação à
cultura da modernidade.
5. Soli Deo
Gloria - "A Deus somente, a glória", ou a exclusividade do serviço e
da adoração a Deus.
Coroando estes
temas que a Reforma nos legou está o da "glória somente a Deus". Dar
glória somente a Deus significa que ninguém, nem homens nem anjos, deve ocupar
o lugar que pertence a Ele, no mundo e em nossa vida, porque somente Ele é o
Senhor. É o que exige o 1º mandamento: "Eu sou o SENHOR, teu Deus, que te
tirei da terra do Egito, da casa da servidão. Não terás outros deuses diante de
mim" (Ex 20:1-2). A história do homem é uma história de quebra desse
mandamento. Depois do pecado, o homem tem constituído deuses para si em lugar
do Deus verdadeiro. Geralmente, esse deus é ele próprio. Quando decide o que
deve ou não crer, o que pode ou não ser verdadeiro, está dizendo que ele é o
seu próprio deus. Sua razão (distorcida pelo pecado) é o seu critério de
verdade. Quando a Igreja se coloca na posição de julgar o que deve ou não
aceitar da Bíblia, e se arvora em sua intérprete infalível, está assumindo para
si o lugar de Deus. Quando ela prega a devoção a Maria e aos santos (ainda que
diga que venera mas não adora), está usurpando a Deus da prerrogativa de sua
glória exclusiva ("Eu sou o SENHOR, este é o meu nome; a minha glória,
pois, não a darei a outrem, nem a minha honra, às imagens de escultura";
Isa 42:8). A doutrina católica, com sua ênfase nos méritos e obras humanos,
rouba a Deus de sua glória exclusiva.
A glória de
Deus é o fim para o qual Ele criou todas as coisas. Não é só o fim principal do
homem (conforme o nosso Breve Catecismo), mas o fim de todas as coisas. É o fim
do próprio Deus, como crê John Piper, porque Ele é o bem supremo (cf. Desiring
God, Leicester: Inter-varsity Press, 1990, p. 13). Todas as coisas, e isso
inclui a salvação, visam a glória de Deus, não o bem estar dos homens (Ef
1:6,12,14). Por isso Deus é glorificado também nos que se perdem. É o que
chamamos de "teocentrismo".
Michael Horton
afirma que Lutero lutou para distinguir sua obra de 'reformas' anteriores.
Semelhantes a muitos dos movimentos frenéticos de reforma, renovação e
avivamento dos nossos dias, as outras reformas se preocupavam com moralidade,
vida da igreja e mudanças estruturais, mas Lutero disse: 'Nós visamos a
doutrina'. Não que fossem sem importância essas outras áreas, mas seriam
secundárias. Contudo, com sua 'Revolução Copernicana', nasceu um movimento
teocêntrico que teve enormes efeitos sobre a cultura mais ampla. A orientação
da vida e do pensamento centrados em Deus começou no culto, em que o enfoque
era na ação de Deus em sua Palavra e sacramento, em vez de estar em
deslumbrar e entreter as pessoas com pompa e aparato. Quando os crentes estavam
centrados em volta de Deus e sua obra salvífica em Cristo, seus cultos
ajustavam sua visão a outro grau: deixavam de servir como pessoas mundanas para
verem-se como pecadores redimidos, cuja vida só poderia ter um propósito:
glorificar a Deus e gozá-lo para sempre" (Reforma Hoje, São Paulo: Editora
Cultura Cristã, 1999, p.124).
E foi devido a
esse conceito de que vivemos para Deus e de que para ele devemos fazer o melhor
que a Reforma contribuiu para uma grande revolução não só no campo religioso,
mas no mundo das artes, da ciência e da cultura em geral. Soli
Deo Gloria passou a ser o lema não só de reformadores, mas de músicos
(como Bach), pintores (como Rembrandt) e escritores (como Milton), que apunham
às suas obras esta expressiva dedicatória ( Ibidem)
Esta visão
teocêntrica a Reforma encontrou na Bíblia. Depois de tratar das doutrinas da
salvação, Paulo declara: "Porque dele, e por meio dele, e para ele são
todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente. Amém!" (Rm 11:36) e,
ao concluir sua epístola aos Romanos, louva ao Senhor com estas palavras:
"ao Deus único e sábio seja dada glória, por meio de Jesus Cristo, pelos
séculos dos séculos. Amém! (16:27). A glória de Deus também foi o tema do
cântico dos anjos ao redor do trono, dos seres viventes e dos anciãos, e de
todas as criaturas que João ouviu em suas visões, os quais diziam: "Digno
é o Cordeiro que foi morto de receber o poder, e riqueza, e sabedoria, e força,
e honra, e glória, e louvor" (Ap 5:12) e '"Àquele que está sentado no
trono e ao Cordeiro, seja o louvor, e a honra, e a glória, e o domínio pelos
séculos dos séculos" (Ap 5:13) e ainda "Ao nosso Deus, que se assenta
no trono, e ao Cordeiro, pertence a salvação...O louvor, e a glória, e a
sabedoria, e as ações de graças, e a honra, e o poder, e a força sejam ao nosso
Deus, pelos séculos dos séculos. Amém!" Ap 7:10-12.
Quero concluir
citando a esse respeito as palavras de James M. Boice, ex-pastor da 10ª Igreja
Presbiteriana da Filadélfia, recentemente falecido. Ele diz: Meu argumento é
que o motivo pelo qual a igreja evangélica atual está tão fraca e o porquê de
não experimentarmos renovação, embora falemos sobre nossa necessidade de
renovação, é que a glória de Deus foi, em grande, parte esquecida pela igreja.
Não é muito provável vermos avivamento de novo enquanto não recuperarmos as
verdades que exaltam e glorificam a Deus na salvação. Como podemos esperar que
Deus se mova entre nós, enquanto não pudermos dizer de novo, com verdade:
"Só a Deus seja a glória"? O mundo não pode dizer isso. Ao contrário,
está preocupado com sua própria glória. Como Nabucodonozor, ele diz: Veja essa
grande Babilônia que construí pelo meu poder e para minha glória" . Os
arminianos não podem dizê-lo. Podem dizer "a Deus seja a glória", mas
não podem dizer "só a Deus seja a glória", porque a teologia
arminiana tira um pouco da glória de Deus na salvação e a dá para o indivíduo,
que tem a palavra final em dizer se vai ou não ser salvo. Mesmo aquelas pessoas
do campo reformado não podem dizê-lo, se o principal que estão tentando fazer
nos seus ministérios é edificar seus próprios reinos e tornar-se importantes no
cenário religioso. Nunca vamos experimentar a renovação na doutrina, no culto e
na vida enquanto não pudermos dizer honestamente: "só a Deus seja a
glória" (Reforma Hoje, pp. 192-193).
A Reforma nos
legou esses grandes temas, que são doutrinas preciosas da Bíblia. Cabe a nós
hoje, seus legatários, dizer se somos ou não dignos herdeiros dessa herança e
continuadores dessa obra. O que cremos e o que pregamos representa nossa
resposta. [6]
Nota:
[6]'é Reformada -
Biblioteca Reformada http://www.geocities.com/arpav/biblioteca/
Autor: Rev.João Alves
dos Santos
Rev.João Alves dos
Santos É Professor Assistente de Teologia Exegética (NT) do CPAJ.
É graduado em
teologia pelo Seminário Presbiteriano Conservador (B.Th., 1963); mestre em
Divindade e em Teologia do AT pelo Faith Theological Seminary (M.Div., 1973, e
Th.M., 1974) e mestre em Teologia do NT pelo Seminário Presbiteriano Rev. José
Manoel da Conceição (Th.M., 1985). É também graduado em Direito pela Faculdade
de Direito de Bauru, SP (1969) e em Letras pela Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras Prof. José A. Vieira, em Machado, MG (1981). Foi
professor de Grego e Exegese do NT no Seminário Presbiteriano Rev. José Manoel
da Conceição (1980-2004) e professor de Teologia Sistemática no Seminário
Presbiteriano Conservador (1974 -2004). Foi também professor de Grego e Exegese
do NT no Seminário Presbiteriano do Sul (1980 a 1986) e o primeiro
coordenador do CPAJ (1991). É ministro da Igreja Presbiteriana Conservadora do
Brasil e membro do corpo editorial da revista Fides Reformata.
P.C.C.
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