Existe um expressão comum no mundo político da
Venezuela – “saltar la talanquera” – que poderia ser traduzido por
“pular sobre a barricada” e que significa passar para o outro lado.
Muita gente que na sua juventude, e por largos anos,
abraçou os ideais do socialismo, resolveu “saltar la talanquera”,
renegando, sob os mais variados pretextos, tudo o que pensava e defendia, e
muda de lado, de mala e cuia.
Como necessitam ser bem recebidos pelos novos
correligionários, mostram-se crescentemente mais realistas que o rei. Ou seja,
homens com uma história de esquerda passam a defender algumas das teses mais
caras à direita.
Mudar de lado não é um ato gratuito. Há que se pagar
pedágio sempre – e ele é caro e exigente - demonstrando por atos e palavras que
são leais à nova trincheira e aos seus valores. É o caso de Arnaldo Jabor,
Roberto Freire, Marcelo Madureira, Alberto Goldman e tantos outros. E do poeta
e cronista Ferreira Gullar.
Gullar publicou na Folha de domingo, 17 de março, artigo
sob o título “A revolução que não houve”.
Não vou refutar suas posições ideológicas ou
políticas. Eles tem as deles, nós, as nossas, e assim vamos travando a batalha
de idéias. O que quero rebater são suas inverdades e distorções – e até um
grave vilipêndio - acerca de fatos concretos. O poeta Gullar não pode alegar
desconhecimento, pois é jornalista, nem ignorância, posto que é intelectual.
O articulista afirma que Hugo Chávez
“...não só fechou emissoras de televisão como criou as
Milícias Bolivarianas, que, a exemplo da conhecida juventude nazista,
inviabilizava pela força as manifestações políticas dos adversários do
governo”.
O sinal eletro-eletrônico, lá como aqui, é de
propriedade do Estado. A concessão de transmissão por sinal aberto da RCTV – e
este foi um caso único – deixou de ser renovada, entre muitas outras razões,
pelo fato da emissora ter tramado e liderado o Golpe de Estado de abril de 2002
contra o presidente Chávez, fato cabalmente demonstrado no
documentário “A Revolução Não Será Televisionada”.
Nos Estados Unidos, por exemplo, esta ocorrência
levaria os donos da estação a uma condenação severíssima (muito
provavelmente pena de 25 anos de prisão por sedição [redecastorphoto]).
O sinal fechado da RCTV continua funcionando normalmente.
À parte a odiosa e absurda comparação com as milícias
hitleristas, a Lei Orgânica das Forças Armadas Bolivarianas da Venezuela (FABV)
estabelece que a Milícia Bolivariana, subordinada ao Comando Estratégico
Operacional das Forças Armadas Bolivarianas da Venezuela, tem como missão
treinar, preparar e organizar o povo para a defesa integral com o fim de
complementar o nível de prontidão operacional da FABV, contribuir para a manutenção
da ordem interna, segurança, defesa e desenvolvimento integral da Nação com o
propósito de coadjuvar e independência, soberania e integridade do espaço
geográfico da Nação.
Repto o Sr. Gullar ou qualquer outro a mencionar um só
caso em que a Milícia Bolivariana tenha sido utilizada para
inviabilizar, pela força ou não, qualquer manifestação política ou de outra
ordem da oposição.
Diz mais o cronista:
“O azar dele foi o câncer que o acometeu e que ele
tentou encobrir. Quando não pode mais, lançou mão da teoria conspiratória,
segundo a qual seu câncer foi obra dos norte-americanos”.
Agora mesmo estamos assistindo à autorização da
família do ex-presidente João Goulart para a sua exumação, 37 anos após o
falecimento, porque há forte suspeita que ele tenha sido envenenado para
induzir um ataque cardíaco pela Operação Condor, sabidamente apoiada e
orientada pela CIA. Foi possível com Jango, porque não poderá ser com Chávez. A
ciência provavelmente irá dirimir a dúvida em ambos os casos.
“De qualquer modo, tinha que se curar e foi tratar-se
em Cuba, claro, para que ninguém soubesse da gravidade da doença...”
Não é nada claro, Sr. Gullar. Vindo do Equador e do
Brasil desce Chávez em Havana, caminhando com dificuldade e apoiado numa
muleta. Foi estar com Fidel e com ele se queixou das dores. Fidel lhe fez uma
enxurrada de perguntas e o convenceu a passar imediatamente por uma bateria de
exames no melhor hospital de Havana. Foi nesse momento que se descobriu que
carregava na região pélvica um tumor “do tamanho de uma bola de beisebol”. E lá
mesmo passou pela primeira das quatro operações cirúrgicas.
A Venezuela e o mundo todo souberam, imediatamente, da
gravidade da doença e com algum detalhe.
Razões de Estado sempre cercam enfermidades de chefes
de Estado e de governo. Não obstante, no caso de Chávez foram 27 comunicados
públicos ao longo dos quase dois anos, feitos por ele mesmo ou por ministros do
governo.
François Mitterrand passou dois setenatos carregando
um câncer de próstata, que o acabou matando, sem que a opinião pública soubesse
de algo. Antes dele, o presidente Georges Pompidou morreu no exercício do
cargo, inesperadamente, de Macroglobulinemia de Waldenström e, antes de sua
morte, ninguém soube de nada, salvo alguns jornalistas que suspeitaram de seu
súbito inchaço.
Gullar omite e distorce quando diz que
“Para culminar, (Chávez) fez mudarem a Constituição
para tornar possível sua reeleição sem limites. Aliás, é uma característica dos
regimes ditos revolucionários não admitir a alternância no poder”.
Na verdade, Chávez fez questão de que a emenda
constitucional permitindo a postulação indefinida passasse por referendo
popular e não simplesmente aprovada pela Assembleia Nacional onde detinha
praticamente a totalidade das cadeiras (a oposição se recusara a concorrer às
eleições legislativas).
Houve ampla e livre campanha e o SI ganhou por boa
margem. O povo assim decidiu.
A propósito, nos Estados Unidos havia uma tradição de
apenas dois mandatos de quatro anos mas nada na Constituição impedia a
postulação indefinida. Roosevelt foi eleito em 1932, reeleito em 1936,
novamente eleito em 1940 e outra vez eleito em 1944. Faleceu em abril de 1945
com apenas 63 anos. Seria facilmente reeleito pela 5ª, 6ª e 7ª vez, pois saíra
vitorioso da Segunda Guerra Mundial e os Estados Unidos confirmavam a condição
de super-potência. Alguém tisnou de anti-democrático a contínua reeleição de
Roosevelt ? Essa possibilidade foi revogada posteriormente por uma eventual
maioria republicana.
O articulista envereda sibilina e maliciosamente pelo
terreno jurídico:
“Contra a Constituição, Nicolás Maduro ... assume o
governo, embora já não gozasse, de fato, da condição de vice-presidente, já que
o mandato do próprio Chávez terminara”
E mais adiante:
“Mas, na Venezuela de hoje, a lei e a lógica não
valem. Por isso mesmo, o próprio Tribunal Supremo de Justiça – de maioria
chavista, claro – legitimou a fraude, e a farsa prosseguiu até a morte de
Chávez; morte essa que ninguém sabe quando, de fato, ocorreu”.
O sr. Gullar nunca se referiu ao nosso STF como de
maioria tucana, claro, em especial durante o julgamento midiático da AP 470. Os
membros da Suprema Corte na Venezuela, que devem ser cidadãos de reconhecida
honorabilidade e juristas de notória competência, gozar de boa reputação e ter
exercido a advocacia ou o magistério em ciências sociais por pelo menos 15
anos, e possuir reconhecido prestígio no desempenho de suas funções, são
eleitos por um período único de 12 anos. Postulam-se ou são postulados ante o
Comitê de Postulações Judiciais.
O comitê, ouvida a comunidade jurídica, envia uma
pré-seleção ao Poder Cidadão, que, por sua vez, faz uma nova pré-seleção e a
envia à Assembleia Nacional que fará a seleção definitiva. (arts. 263 e 264 da
Constituição Bolivariana). Cabe, por outro lado, à Sala Constitucional do
Tribunal Supremo da Venezuela (art. 266) exercer a jurisdição constitucional,
como única intérprete da Constituição. E ela considerou, em decisão articulada
e bem fundamentada, que:
a) pelo fato de estar
ainda em curso a licença concedida pela Assembleia Nacional ao presidente
Chávez;
b) que havia uma
continuidade administrativa pois Chávez havia sido reeleito; a posse poderia se
dar em outro momento e ante o TSJ, fato também previsto na Constituição e que
Nicolás Maduro poderia continuar exercendo a vice-presidência executiva. (Na
Venezuela o vice-presidente é indicado pelo presidente e não eleito
conjuntamente). Com a morte de Chávez, aplicou-se o art. 233, passando Maduro a
exercer o cargo de Presidente Encarregado, obrigando-se a convocar eleições em 30
dias, o que foi feito.
E onde reside o vilipêndio, a ignomínia de Ferreira
Gullar? Repetindo maquinalmente o que a extrema-direita golpista e corrupta da
Venezuela alardeou, afirma que a farsa prosseguiu até a morte de Chávez, que
ninguém sabe quando de fato ocorreu. Isto é uma grave ofensa antes de mais nada
à dignidade dos pais, irmãos e filhos de Hugo Chávez, porquanto afirmar que
ninguém sabe quando ocorreu a morte é imputar à família do presidente
participação numa farsa. As filhas de Chávez em discursos emocionados, num e noutro
momento, repeliram a rancorosa e covarde acusação, reafirmando que Chávez
faleceu, quase diante de seus olhos, no dia 5 de março no hospital militar de
Caracas, exatamente às 16 h25.
E por quê afirmou no título que há uma revolução
socialista bolivariana em marcha? Evidentes êxitos dos programas
sociais do governo Chávez não a caracterizaria. Esta proeza pode ser alcançada
por países em regime capitalista. Há, porém, um dado da realidade na
Venezuela: a massa pobre e de trabalhadores alcançou um bom nível de
consciência política e ideológica e está organizada. Vale-se do Partido
Socialista Unido da Venezuela para a sua mobilização. E dispõe-se a respaldar o
governo a fim de levar adiante o “Plano Socialista da Nação – 2013-2019”,
programa histórico de cinco objetivos fundamentais, que tem por lema
“desenvolvimento, progresso, independência, socialismo”.
Sempre com fundamento na Constituição que estabelece
que a soberania reside intransferivelmente no povo que a exerce diretamente na
forma prevista na Carta Magna e nas leis e indiretamente, mediante o sufrágio
direto e secreto, Chávez liderou a expansão da democracia participativa,
diminuiu o peso do empresariado, dos meios comerciais de comunicação e das
casamatas mais retrógadas do aparelho estatal, especialmente no sistema
judiciário.
Criou a base social que permite agora avançar na
transformação socialista em curso, trazendo as Forças Armadas para dela
lealmente participar.
Uma das mais relevantes medidas de transferência de
poder ao povo é a criação e o desenvolvimento do poder comunal. Trata-se de
pequenas áreas geográficas, distritos ou bairros, que funcionam como
instituições políticas e que também podem organizar seus próprios serviços
públicos, constituir empresas para diferentes atividades e receber
financiamento direto do governo nacional. Busca-se, assim, esvaziar os
estamentos burocráticos ainda controlados ou corrompidos pelos antigos
senhores.
Ao contrário de outras experiências de identidade
socialista, a ampliação da democracia direta não foi acompanhada pela redução
de liberdades, mesmo daqueles setores que participaram do golpe de Estado em
2002 ou que insistem na oposição golpista.
Não se tolheu a liberdade de expressão nem a liberdade
de imprensa. Partidos de cariz neoliberal, de direita, sociais-democratas ou
ultra-esquerdistas continuam a funcionar normalmente com ampla liberdade de
organização e manifestação pacífica.
Dois fortes sinais indicam que a revolução socialista
bolivariana está atingindo um ponto de não retorno.
O primeiro foi o extraordinário
comportamento do povo venezuelano diante da morte de seu comandante-presidente.
Milhões saíram às ruas para homenageá-lo. Embora comovido, mostrou-se sereno,
pacífico, responsável e democrático. Isto permitiu que o governo funcionasse e,
principalmente, a estabilidade institucional fosse garantida. Não caiu nas
provocações alimentadas por setores raivosos da direita. Reagiu com senso
civilizado extraordinário, com dignidade. No entanto, como se pôde assistir,
disposto a qualquer coisa para defender o legado de Hugo Chávez, o progresso e
as conquistas sociais, o desenvolvimento da economia, a soberania e a
independência da pátria, a consolidação da integração regional
latino-americana.
O segundo sinal está por vir e será a
confirmação desta vontade popular. No dia 14 de abril serão realizadas eleições
livres, justas e transparentes, como garante o Conselho Nacional Eleitoral,
para presidente da Venezuela.
A vitória de Nicolás Maduro constituirá um marco
histórico e dará início a uma nova etapa da revolução socialista
bolivariana.
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