A RESIGNAÇÃO DE
BENTO XVI EVIDENCIA A INCAPACIDADE DE
DOMAR A ALCATEIA QUE CRIOU E ALIMENTOU
EM 31 ANOS DE PODER -- (...)
No caso de Joseph Ratzinger não houve pressão visível por sua renúncia.
Ao contrário, sua decisão apanhou todos de surpresa, (...) O
punhado de cardeais chamados para um consistório ordinário - uma
reunião de rotina - ficou pasmo ao ser informado (...)
de que o papa "pela idade avançada e diminuição do vigor, tanto do
corpo quanto do espírito", sentia-se incapaz de exercer suas funções e
germanicamente comunicava o aviso prévio: deixaria o posto às 20 horas de
28 de fevereiro.
(...)
É de se supor que alguma gota d'água entornou o copo nos últimos dias.
Poderia ser, por exemplo, a insubordinação aberta por parte de alguém que
não se atreve a demitir - talvez o secretário de Estado Tarcisio
Bertone, apontado por muitos como líder da dissidência. A revista
italiana Panorama afirma que Ratzinger se decidiu após ler um
relatório sobre os Vatileaks entregue em 17 de dezembro [de
2012] que expunha a resistência da Cúria [Corte Pontifícia] a mudanças e ações
para promover mais transparência.
(...)
Fez [o papa] há três meses uma pequena cirurgia para trocar as baterias de
seu marca-passo (que usa desde 2005, antes de ser eleito papa) e sofre de
artrite, mas de resto tem uma saúde tão boa quanto se pode esperar aos 85 anos.
(...)
A Igreja não vive uma conjuntura mais serena do que há três anos, muito ao
contrário. Sofreu derrotas políticas embaraçosas em vários países, as denúncias
de escândalos morais e financeiros se agravaram, a tentativa de reconciliação
com os seguidores de Marcel Lefebvre fracassou, conflitos internos e evidências
de corrupção vazaram à imprensa na série apelidada Vatileaks, para
a qual o mordomo do papa, Paolo Gabriele, serviu de correio e bode expiatório,
e o banqueiro que escolheu e nomeou para "limpar" o Banco do Vaticano,
Ettore Gotti Tedeschi, foi ameaçado, destituído e desacreditado pelos
conselheiros e por Bertone após redigir um informe secreto no qual relatava
contas de políticos, empreiteiros e mafiosos intermediados pelo clero.
A renúncia se dá semanas depois de a Itália proibir os bancos de negociar
com o Vaticano por esse desrespeitar normas internacionais contra a lavagem de
dinheiro ...
(...)
Ao pregar a fiéis na Missa de Cinzas após o anúncio da renúncia, Ratzinger
afirmou que a Igreja "está desfigurada pelas divisões em seu corpo
eclesiástico" e denunciou "a hipocrisia religiosa, o comportamento
dos que querem aparentar [sic], as atitudes que buscam os aplausos e a
aprovação", sinal de que sua atitude está relacionada à política interna
da Cúria. No dia seguinte, ao falar aos párocos de Roma, defendeu "o
verdadeiro Concílio Vaticano II, não o da mídia", e o diálogo com
outras religiões, o que sugere que o desafio veio da direita.
(...)
À humilhação de ser reduzido a uma marionete, preferiu cortar as cordas,
talvez com a sincera esperança de abrir caminho a um sucessor menos idoso e
mais enérgico, mas foi ele mesmo quem criou e nutriu a alcateia que hoje o
cerca.
(...)
Como chefe da Congregação para a Doutrina da Fé e depois papa, Ratzinger
foi restaurador de tradições, guardião da ortodoxia, caçador implacável de
clérigos e teólogos progressistas como Hans Küng e Leonardo Boff e dos bispos
que simpatizavam com essas ideias, substituídos por notórios conservadores à
media que se aposentavam.
(...)
Dentro desses limites, a prioridade foi combater as esquerdas, às quais
João Paulo I fizera gestos conciliadores durante seu breve pontificado,
encerrado de forma prematura e algo suspeita [morte dada como natural, mas
suspeita, por muitos, de ter sido por envenenamento]. Não se poderia
esperar outra coisa da eleição de Wojtyla, um obsessivo anticomunista, em favor
do qual, segundo mais de um autor, a CIA fez um lobby intenso para convencer os
cardeais moderados. Em nome desse combate, o Vaticano se submeteu a uma
aliança pragmática com Ronald Reagan, Bush pai e Margaret Thatcher e fechou os
olhos tanto ao que houvesse de pouco cristão no neoliberalismo e nas ditaduras
de direita quanto aos abusos sexuais e financeiros de clérigos que rezassem
pelo mesmo catecismo.
(...)
E assim ... mesmo depois da queda da União Soviética (...), o Vaticano
tardou a perceber que o comunismo e a Teologia da Libertação perderam
relevância e as ameaças reais passaram a ser a exacerbação da concorrência, do
individualismo e do hedonismo pelo capitalismo neoliberal que ajudou a promover
e a disputa feroz pelo poder entre as organizações conservadoras que protege e
favorecem interesses políticos e econômicos da iniciativa privada que as
financia, como a Renovação Carismática, o Caminho Neocatecumenal, os
Legionários de Cristo (atuante no México, na América do Norte e nas Filipinas),
o Opus Dei (influente entre empresários e partidos de direita ibéricos e
sul-americanos) e a Comunhão e Libertação (que apadrinha Silvio Berlusconi).
No início do pontificado, o papa ... pareceu querer se alinhar à tese da
"Guerra das Civilizações" e à cruzada neoconservadora contra o Islã,
atacando essa fé como violenta e Maomé por a "espalhar com a espada"
(como se cristãos não tivessem feito o mesmo). Dpois foi a Auschwitz
atribuir os crimes do nazismo a "um bando de criminosos que abusou do povo
alemão". Isso por parte de um homem que foi alistado na juventude
hitlerista na adolescência. Pelo chefe de uma Igreja que se calou ante os
crimes que hoje condena e apoiou o fascismo em troca das doações de Benito
Mussolini (a título de indenização pela perda dos Estados Papais), das quais se
origina boa parte do seu atual império imobiliário de quase um bilhão de dólares,
...
Mais apegado a símbolos de ortodoxia do que à caridade ante o sofrimento
concreto, o Vaticano de Bento XVI também priorizou pregar a castidade e o
combate ao uso de preservativos em países africanos devastados por epidemias,
guerras, fome e corrupção. Esforçou-se por impedir a pesquisa médica com
células tronco de fetos e proibir o aborto em qualquer circunstância, incluindo
crianças estupradas e mulheres para as quais a gravidez representa risco de
vida. O mote do papa era preferir uma Igreja pequena, ... e sustentar sua
pesada estrutura com a contribuição de fiéis, voluntária ou arrecadada por
governos (como ainda fazem os da Espanha, Itália, Áustria e Alemanha, entre
outros).
(...)
Os confrontos com os Estados laicos e as tentativas de influenciar eleições
na Europa e na América Latina aceleram o desgaste da relação entre a Igreja e
as sociedades ocidentais, não a favorecem na África e na Ásia e podem levá-la a
perder mais cedo os privilégios tradicionais que lhe restam.
Bento XVI provavelmente acredita no que prega, tolerou a corrupção em nome
do que considerava fins mais altos e em alguns casos agiu contra ela. ... Mas,
de resto, se chegou a punir alguns clérigos culpados ou coniventes, ... foi sob
a pressão de provas esmagadoras e da indignação crescente da sociedade laica.
O Vaticano ainda está longe de satisfazer governos e tribunais
tanto nesses casos quanto naqueles que se referem às investigações de
outros abusos, de manipulações financeiras ilegais à conivência do clero com a
tortura e a execução de militantes de esquerda nas ditaduras latino-americanas.
E como sua renúncia evidenciou, também é incapaz de controlar o conluio de
interesses empresariais, políticos e clericais que ajudou a alimentar e hoje
travam as tentativas de reforma tanto do Vaticano quanto da Itália -
a corrupção secreta que viceja à sombra de qualquer autoritarismo.
Provavelmente, será sucedido por um europeu igualmente conservador e intransigente
para com os pecados da massa, mas mais tolerante para com os da Cúria, que
manterá a Igreja no caminho firme, reto e seguro da decadência.
M. N. C.
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