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quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Um papa sem encanto

A renúncia de Bento 16 contém lições interessantes


Empossado com um programa que pretendia reconduzir a Igreja para um mundo fechado nela mesma, voltada exclusivamente para debates de natureza espiritual, longe das questões que afligem os homens e mulheres do mundo, Bento 16 deixou o trono da Igreja em ambiente de decepção e melancolia. Um de seus admiradores afirma que, embora tenha sido um grande teólogo, Bento 16 fracassou como papa.
Não é de surpreender. Não tenho a menor condição de debater teologia. Mas, ateu desde a infância, tenho capacidade de examinar os papas como aquilo que são: chefes políticos da Igreja. E é nesta função que o fracasso de Bento 16 contém elementos didáticos.
Embora o conservadorismo católico tenha produzido vários representantes ao longo da história da igreja, Bento 16 não era apenas um papa fora do tempo – era um papa contra seu tempo. Num mundo em que a cultura tornou-se plural, as sociedades se mostram complexas, os cidadãos se recusam a abrir mão de sua autonomia, seus direitos e opções de vida, a proposta de Bento 16 era uma forma de clausura política e cultural.
Ele se recusava a dar respostas consistentes para a vida das pessoas do século 21, fosse em relação à vida em família, aos direitos das mulheres, às angústias dos mais pobres. Alguém acha viável ter audiência junto às mulheres sem falar sobre aborto? Ou conversar com a juventude sem falar da liberdade sexual? Ou procurar audiência junto às grandes populações do planeta sem responder à pobreza, à desigualdade?
Basta assistir a uma missa num bairro popular de São Paulo – recomendo a Achiropita, no Bixiga – para se entender o que estou dizendo. É fácil perceber quando os fiéis prestam atenção, quando se empolgam, quando ficam entediados. Este conservadorismo radical de Bento 16 queria transformar o isolamento social da Igreja em virtude.
Antecessor de Bento 16, João Paulo 2º, era um papa conservador, que deu início a uma política de combate à Teologia da Libertação e perseguição ao clero comprometido com os interesses dos mais pobres e oprimidos, como aconteceu em São Paulo, com dom Paulo Evaristo Arns – cardeal que esteve longe de liderar alguma fração esquerdista da Igreja, mas jamais abandonou valores como o respeito pelos direitos humanos e a democracia.
Mas João Paulo 2º nunca deixou de dar respostas – a sua maneira – às questões da vida concreta. Sua pregação tinha elementos democráticos, sua mensagem procurava responder ao sofrimento de homens e mulheres comuns – e por isso ele atraía multidões por onde passava. As viagens de Bento 16 jamais tiveram a mesma vibração nem a mesma acolhida, num sinal de que seu papado acentuou uma tendência histórica da Igreja.
No início dos anos de 1980, o francês Marcel Gauchet escreveu um clássico sobre as religiões, O desencantamento do mundo. Ele explica a decadência universal do catolicismo pelas mudanças na vida em sociedade.
Para Gauchet, o apogeu da religião ocorreu em épocas históricas em que as pessoas acreditavam que viviam num mundo encantado. Simplificando uma teoria muito mais complexa: homens e mulheres acreditavam viver num mundo em que a religião era uma forma de magia. Atribuíam aos céus suas alegrias e tristezas, sucessos e desgraças. Pensavam que a colheita era obra divina, tinham certeza de que havia uma vida após a morte e atribuíam cada passo da existência à decisão de Deus. Acreditavam em milagres.
Naquele mundo de encantamento, temia-se o pecado como uma ação terrível e a punição divina como um castigo material.
À medida que a sociedade se modificou, os meios de subsistência evoluíram, a educação e o conhecimento se ampliaram, inclusive para as populações muito pobres, muitas conquistas científicas se mostraram indispensáveis para o bem-estar de todos, era preciso falar a outros homens e mulheres, outras angústias e preocupações. João 23 e, em certa medida, Paulo 6º fizeram esforços neste sentido. Ao contrário do que sugeriam seus inimigos, a Teologia da Libertação e correntes semelhantes ajudaram a prolongar a audiência da Igreja. Deram-lhe uma audiência que as correntes conservadoras jamais teriam alcançado.
O projeto de Bento 16 era fazer o caminho de volta. Chegava a dizer que preferia uma Igreja menor e menos influente, mas composta por fiéis convictos e irredutíveis, do que uma comunidade ampla e pouco consistente.
Foi esta sua aposta política. Um engano, que o crescimento das igrejas pentecostais demonstra pelo avesso: conseguem combinar a angústia material dos mais pobres com a promessa de milagres aqui e agora.
Falando a um mundo em que poucos creem, Bento 16 desencantou-se.

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A.     G.

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