A
renúncia de Bento 16 contém lições interessantes
Empossado com um programa
que pretendia reconduzir a Igreja para um mundo fechado nela mesma, voltada
exclusivamente para debates de natureza espiritual, longe das questões que
afligem os homens e mulheres do mundo, Bento 16 deixou o trono da Igreja em ambiente
de decepção e melancolia. Um de seus admiradores afirma que, embora tenha sido
um grande teólogo, Bento 16 fracassou como papa.
Não é de surpreender. Não tenho a menor condição de debater
teologia. Mas, ateu desde a infância, tenho capacidade de examinar os papas
como aquilo que são: chefes políticos da Igreja. E é nesta função que o
fracasso de Bento 16 contém elementos didáticos.
Embora o conservadorismo católico tenha produzido vários
representantes ao longo da história da igreja, Bento 16 não era apenas um papa
fora do tempo – era um papa contra seu tempo. Num mundo em que a cultura
tornou-se plural, as sociedades se mostram complexas, os cidadãos se recusam a
abrir mão de sua autonomia, seus direitos e opções de vida, a proposta de Bento
16 era uma forma de clausura política e cultural.
Ele se recusava a dar respostas consistentes para a vida das
pessoas do século 21, fosse em relação à vida em família, aos direitos das
mulheres, às angústias dos mais pobres. Alguém acha viável ter audiência junto às
mulheres sem falar sobre aborto? Ou conversar com a juventude sem falar da
liberdade sexual? Ou procurar audiência junto às grandes populações do planeta
sem responder à pobreza, à desigualdade?
Basta assistir a uma missa num bairro popular de São Paulo –
recomendo a Achiropita, no Bixiga – para se entender o que estou dizendo. É
fácil perceber quando os fiéis prestam atenção, quando se empolgam, quando
ficam entediados. Este conservadorismo radical de Bento 16 queria transformar o
isolamento social da Igreja em virtude.
Antecessor de Bento 16, João Paulo 2º, era um papa conservador,
que deu início a uma política de combate à Teologia da Libertação e perseguição
ao clero comprometido com os interesses dos mais pobres e oprimidos, como
aconteceu em São Paulo, com dom Paulo Evaristo Arns – cardeal que esteve longe
de liderar alguma fração esquerdista da Igreja, mas jamais abandonou valores
como o respeito pelos direitos humanos e a democracia.
Mas João Paulo 2º nunca deixou de dar respostas – a sua maneira
– às questões da vida concreta. Sua pregação tinha elementos democráticos, sua
mensagem procurava responder ao sofrimento de homens e mulheres comuns – e por
isso ele atraía multidões por onde passava. As viagens de Bento 16 jamais
tiveram a mesma vibração nem a mesma acolhida, num sinal de que seu papado
acentuou uma tendência histórica da Igreja.
No início dos anos de 1980, o francês Marcel Gauchet escreveu um
clássico sobre as religiões, O
desencantamento do mundo. Ele explica a decadência universal do catolicismo
pelas mudanças na vida em sociedade.
Para Gauchet, o apogeu da religião ocorreu em épocas históricas
em que as pessoas acreditavam que viviam num mundo encantado. Simplificando uma
teoria muito mais complexa: homens e mulheres acreditavam viver num mundo em
que a religião era uma forma de magia. Atribuíam aos céus suas alegrias e
tristezas, sucessos e desgraças. Pensavam que a colheita era obra divina,
tinham certeza de que havia uma vida após a morte e atribuíam cada passo da
existência à decisão de Deus. Acreditavam em milagres.
Naquele mundo de encantamento, temia-se o pecado como uma ação
terrível e a punição divina como um castigo material.
À medida que a sociedade se modificou, os meios de subsistência
evoluíram, a educação e o conhecimento se ampliaram, inclusive para as
populações muito pobres, muitas conquistas científicas se mostraram
indispensáveis para o bem-estar de todos, era preciso falar a outros homens e
mulheres, outras angústias e preocupações. João 23 e, em certa medida, Paulo 6º
fizeram esforços neste sentido. Ao contrário do que sugeriam seus inimigos, a
Teologia da Libertação e correntes semelhantes ajudaram a prolongar a audiência
da Igreja. Deram-lhe uma audiência que as correntes conservadoras jamais teriam
alcançado.
O projeto de Bento 16 era fazer o caminho de volta. Chegava a
dizer que preferia uma Igreja menor e menos influente, mas composta por fiéis
convictos e irredutíveis, do que uma comunidade ampla e pouco consistente.
Foi esta sua aposta política. Um engano, que o crescimento das
igrejas pentecostais demonstra pelo avesso: conseguem combinar a angústia
material dos mais pobres com a promessa de milagres aqui e agora.
Falando a um mundo em que poucos creem, Bento 16 desencantou-se.
Leia também:
A.
G.
Sem comentários:
Enviar um comentário