Quantos
papas, no curso da história, terão morrido envenenados? A pergunta é formulada
por John Cornwell, em seu livro Um
ladrão na noite, que a Editora Viking lançou recentemente, na Inglaterra [1989],
e cujo tema é a morte, até hoje não convenientemente esclarecida, do papa João
Paulo 1º. O autor cita um número muito maior de pontífices assassinados do que
se poderia esperar.
João 8º, o primeiro papa a
ser morto, foi envenenado em 882 por membros de sua própria corte. A poção
demorou tanto a agir, que ele foi eliminado a pancada. Aproximadamente dez anos
mais tarde, o corpo do papa Formoso, envenenado por uma facção dissidente de
seu séquito, foi exumado pelo seu sucessor, Estevão 7º, solenemente
excomungado, mutilado, arrastado pelas ruas de Roma e lançado nas águas do
Tibre.
No século 10, João 10 foi
envenenado no cárcere por Marozia, filha de sua amante e mãe de João 11. Ainda
no mesmo século, foram envenenados Benedito 6º e João 14.
O novo milênio não se
mostrou mais benévolo para os santos padres: o primeiro a ser envenenado foi
Silvestre 2º, conhecido como O Mago, por suas alegadas transações com o diabo,
e, poucas décadas depois, Clemente 2º e seu sucessor Dâmaso 2º – embora não se
exclua a hipótese de este último ter sucumbido à malária. No apagar das luzes
do século 13, Celestino 5º foi envenenado por seu sucessor, Bonifácio 8º. Nos
primeiros anos do século 14, Benedito 11 teria morrido por ter ingerido vidro
moído misturado com figos. Cerca de 150 anos se passaram, até a morte de Paulo
2º, depois de comer “dois grandes melões”. Embora a causa da morte possa ter
sido o pecado mortal da gula, suspeitou-se de veneno. E, em 1503, Alexandre 6º,
o famigerado papa da família Borgia, morreu provavelmente envenenado de uma
poção destinada à outra pessoa. A maneira de sua morte sugere arsênico: sua
carne enegreceu, em torno de sua língua, monstruosamente aumentada, formou-se
espuma, e seu corpo ficou inchado de gases, tão intumescido que os encarregados
de seu sepultamento foram obrigados a pular em cima de seu estômago para que a
tampa do caixão pudesse ser fechada.
Nem todas as tramas tiveram
êxito. Cerca de dez anos após a morte de Alexandre 6º, o colégio elegeu Leão
10, que o autor descreve como “um homem tão ávido por dinheiro, que leiloava
chapéus cardinalícios”. Cinco cardeais contrataram um cirurgião florentino para
assassiná-lo pela introdução de veneno no ânus, ostensivamente para tratar das
hemorróidas papais, mas a conspiração foi descoberta.
Teriam cessado os
assassinatos pontifícios com o advento dos tempos modernos? Cornwell não
responde à pergunta, mas, segundo o que ele descreve como um livrinho infame
intitulado Os documentos do
Vaticano, de um certo Nino Lo Bello, um assassinato dessa natureza havia
ocorrido em 1939. No princípio de fevereiro daquele ano, Pio 11, de 82 anos,
planejava um discurso especial contra o fascismo e o antissemitismo e
denunciaria a concordata firmada com Mussolini. Il Duce tinha, pois, motivo
forte para dar cabo do idoso papa. Conta-se que, 24 horas antes de Pio ler seu
discurso em uma reunião especial de bispos, recebeu uma injeção do doutor
Francesco Petacci. Além de suas funções médicas dentro do Vaticano, Petacci era
o pai de Clara Petacci, amante de Mussolini. Os defensores da teoria da
conspiração acreditam que Petacci tenha injetado veneno no papa, pois ele
morreu na manhã seguinte, antes de poder ler seu discurso, cujo texto nunca foi
encontrado.
E agora surge o caso de
Albino Luciani, eleito no dia 26 de agosto de 1978, no quarto escrutínio, numa
das eleições mais rápidas da história do Vaticano, e morto no dia 28 de
setembro do mesmo ano, um dos reinados mais curtos da história do papado. Mas
não o mais curto de todos. Este triste privilégio coube a Urbano 7º, que, em
1590, ocupou o trono de São Pedro durante 13 dias, morrendo de morte natural,
assim como Celestino 3º, que, em 1045, foi papa por 22 dias e Marcelo 2º, que
reinou 23 dias, em 1555. O único que teve morte violenta foi o já citado Dâmaso
2º, cujo papado, em 1048, durou 24 dias.
No prefácio de Um ladrão na noite, John Cornwell escreve: “Esta é a
história de uma investigação das circunstâncias da morte súbita do papa João
Paulo 1º [...] e as alegações de que teria sido assassinado por altos prelados
da Igreja Católica Romana.” O Vaticano esperava que o autor obtivesse provas
conclusivas da falsidade dessas teorias. Cornwell se confessa um católico
relapso. Passou sete anos estudando em seminários ingleses, mas deixou a Igreja
em consequência de uma decisão consciente de rejeitar tanto a vocação como a fé
em Deus. Não obstante, dedicou-se a um projeto de investigação de fenômenos
“sobrenaturais”, como a história de padre Pio, o Estigmático, as mais recentes
provas a respeito do Santo Sudário de Turim e as aparições de Maria às crianças
de Medjugorje, na Iugoslávia. Foram essas últimas que levaram o escritor a
Roma, em outubro de 1987, e ali foi súbita e surpreendentemente estimulado pelo
Vaticano a considerar um projeto inteiramente diferente: a verdadeira história
da morte de João Paulo 1º.
O primeiro encontro de
Cornwell foi com o arcebispo John Foley, presidente da Comissão de Comunicação
Social, “um homem grande e calvo [...] o rosto inocente e redondo como uma
bolacha”. Depois de uma troca de amenidades, Foley surpreendeu o autor,
dizendo: “Há quem diga que o papa João Paulo 1º foi envenenado por um de nós,
aqui, no Vaticano. Um de nós está sendo apontado como suspeito principal. E
pena que alguém como você não escreve a verdade sobre o que realmente aconteceu
[...]. Estou certo de que seria mais interessante do que toda essa ficção
sensacionalista.”
Desnecessário dizer que
John Cornwell aceitou a missão e acabou produzindo Um ladrão na noite, um trabalho
minucioso e, supõe-se, fiel a verdade, o que lhe falta em emoção e drama sobra
em precisão e inteireza. É, na verdade, mais um relatório do que uma obra de
leitura e como relatório deve ser lido.
Cabe, aqui, uma biografia
de Albino Luciani. Nasceu em 17 de outubro de 1912. Filho de um operário
francamente socialista. Frequentou o seminário locais e foi ordenado em 1935,
sendo nomeado vigário-geral de Belluno, sua terra natal, em 1948.
Em 1958 foi designado bispo
de Vittoria Veneto. A partir de 1969, quando já era Patriarca de Roma, passou a
adotar um ponto vista mais de direita. Sua eleição como papa causou quase tanta
estupefação como sua morte 33 dias depois. Como podia o “candidato de Deus”
escolhido com tal entusiasmo por cardeais orientados pelo “Espírito Santo” já
estar morto?
Como causa mortis, infarto
do miocárdio, o papa tinha 66 anos incompletos e gozava de boa saúde. Não
morrera dormindo, dizia o comunicado, mas sentado na cama lendo, com os óculos
sobre o nariz.
Na quinzena que se seguiu a
morte do papa choveram declarações porta-vozes do Vaticano, de membros da papal
e de importantes testemunhas, oficiais ou não. Nessas declarações, Cornwell
detectou dez contradições que persistem até hoje e que envolvem um grave desacordo
a respeito dos seguintes pontos:
1º Quem encontrou o corpo?
2º Onde o corpo foi
encontrado?
3º A causa oficial da
morte.
4º A estimativa da hora da
morte.
5º A hora e a legalidade do
embalsamamento.
6º O que o papa tinha nas
mãos no momento da morte.
7º O verdadeiro estado de
sua saúde nos meses anteriores a sua morte.
8º O paradeiro dos objetos
pessoais do papa que estavam na alcova papal.
9º Se a Cúria havia ou não
ordenado e realizado uma autópsia secreta.
10º Se os embalsamadores
haviam ou não sido chamados antes de o corpo ser oficialmente encontrado.
Os boatos de que João Paulo
1º teria sido assassinado começaram a circular no mesmo dia de sua morte. Uma
das primeiras suspeitas foi levantada por uma organização ligada ao
ultra-tradicionalista arcebispo Lefebvre: o papa fora assassinado por
“liberais” da Igreja Católica, porque planejava abolir as modificações
introduzidas pelo Concílio do Vaticano. Algumas das discrepâncias acima citadas
não haviam escapado à atenção do grupo.
A Rádio Vaticano anunciou
em 29 de setembro que, ao morrer, o papa lia A
imitação de Cristo, popular obra de devoção dos católicos. Outras fontes
disseram que se tratava de sermões e discursos ou, alternativamente, de um
discurso que iria proferir ante uma assembleia de jesuítas.
A agência noticiosa
italiana Ansa, por sua vez, afirmou que o corpo não fora encontrado pelo
secretário papal, padre John Magee, mas por uma irmã, Vincenza, que trazia o
desjejum do pontífice, e que seus restos mortais foram descobertos não às 5h30,
mas às 4h30. Que teria acontecido nessa hora crucial?
Mas o despacho mais
estranho, também divulgado pela Ansa, dizia que os embalsamadores, os irmãos
Ernesto e Renato Signoracci, foram apanhados em suas casas por um carro do
Vaticano às 5 horas da manhã e levados diretamente à morgue da pequena
cidade-estado, onde começaram seu trabalho. Em outras palavras, os irmãos
haviam sido chamados antes da descoberta oficial do corpo. O Vaticano nunca se
pronunciou a respeito.
A teoria da conspiração dos
tradicionalistas continuava a vir à tona, até atingir um bizarro auge em 1983,
no livro de Jean-Jacques Thierry, A
verdadeira morte de João Paulo 1º, segundo o qual o secretário de Estado,
cardeal Jean Villot, teria colocado um sósia no lugar de Paulo 6º e de ter
planejado o assassinato de João Paulo 1º, depois de o infeliz papa ter
descoberto um ninho de maçons no Vaticano.
No mesmo ano foi publicado Pontífice, de Max Morgan-Witts
e Gordon Thomas, que também defendia a teoria do assassinato, sugerindo que se
tratava de um boato circulado pela KGB para desacreditar o Vaticano.
Também em 1983 surgiu um roman à clef, intitulado A batina vermelha, do francês
Roger Peyrefitte, que combinava uma trama da KGB com uma conspiração da Máfia,
dos maçons e do Banco do Vaticano. Usando para seus personagens pseudônimos mal
disfarçados (o arcebispo Paul Marcinkus, por exemplo, chama-se Larvenkus),
Peyrefitte sugere uma reviravolta na motivação: o papa não era um reacionário
morto por liberais. Ao contrário: era um reformador liberal decidido a acabar
com a corrupção. O pano de fundo da intriga era baseado em fatos bem
conhecidos. O Banco do Vaticano tinha de fato fortes elos com Roberto Calvi, o
ambicioso presidente do Banco Ambrosiano de Milão. Calvi, por sua vez, estava
ligado a Michele Sindona, um advogado e financista siciliano, que estivera
preso nos Estados Unidos e na Itália por estelionato. Ambos eram amigos do
presidente do Banco do Vaticano, o notório arcebispo Paul Marcinkus, e estavam
associados a Lício Gelli, um financista italiano que controlava a loja
pseudomaçônica P-2.
No dia 17 de junho de 1982,
após o colapso do Banco Ambrosiano, Calvi foi encontrado enforcado debaixo de
uma ponte em Londres. Até hoje não se sabe se foi suicídio ou assassinato e, em
1986, Sindona morria envenenado numa prisão italiana. Em fins de 1987, Gelli
fora extraditado da Suíça para Itália, onde era procurado pela Justiça.
No romance de Peyrefitte,
Marcinkus e Villot assassinam o papa com veneno injetado. Ao crime estão
associados Calvi, Sindona e Gelli. O motivo imediato dos prelados era evitar
sua demissão. No caso de Marcinkus, sua exoneração teria posto a descoberto o
envolvimento maior do Banco do Vaticano em extensas negociatas com a Máfia e os
maçons.
Em 1984, o assunto
ressurgiu num livro de David Yallop, Em
nome de deus, com a volta de todos os personagens centrais. Assim como os
autores que o precederam, Yallop, na opinião de Cornwell, é forte em motivação
e mistérios circunstanciais e fraco em provas conclusivas que ligassem os
prelados ao assassinato. E os teóricos da conspiração, fictícios ou reais, o
que poderiam atribuir a esses homens de Deus para trair sua vocação e correr o
risco da excomunhão e danação eterna, sem falar nos castigos no mundo dos
vivos? Na verdade, o único com um passado não imaculado era Marcinkus, que,
segundo revela Cornwell, esteve envolvido em escândalos financeiros já em 1972,
quando foi investigado pelo FBI por envolvimento na falsificação de bônus no
valor de US$1 bilhão. Sua amizade com Sindona e Calvi era conhecida. Os quatros
autores são unânimes em afirmar que o novo papa estava de olho nele e a ponto
de expô-lo. As repercussões no mundo financeiro e as implicações para as
finanças do Vaticano teriam sido incalculáveis. Até onde iria Marcinkus para
evitar o desastre?
Foi enfrentando esse
labirinto de contradições que John Cornwell iniciou sua investigação.
Avistou-se com Deus (no sentido figurado, é claro) e todo mundo. Entrevistou o
próprio Marcinkus, que, entre outras coisas, afirmou jamais se ter envolvido
nas finanças do Vaticano. Esteve com dom Diego Lorenzo, o secretário italiano
do papa morto. Compareceu a uma missa rezada por João Paulo 2º e dele ouviu
palavras de encorajamento: “Quero que você saiba que tem meu apoio e a minha
bênção neste seu trabalho.”
Em janeiro, Cornwell
procurou David Yallop, que entrevistara a irmã Vincenza e os irmãos Signoracci.
A primeira havia morrido em junho de 1983 e os embalsamadores se mostraram tão
confusos em seu depoimento a Yallop, e mais tarde a Cornwell, que a hipótese de
uma esclerose avançada não podia ser afastada.
Antes de voltar a Roma,
Cornwell se avistou com um cardiologista norte-americano que passava as férias
em Londres. O médico foi taxativo: “Os cadáveres não ficam sentados,
sorridentes e lendo.”
De regresso ao Vaticano, o
autor voltou a se encontrar com o bispo John Magee, que lhe narrou um episódio
ocorrido um dia antes da morte de João Paulo 1º. O papa acusou dores e mandou
chamar a irmã Vincenza, recusando-se a ver um médico. Sentindo-se melhor,
jantou bem, e Magee perguntou: “Santo Padre, já escolheu a pessoa que vai
promover o retiro da próxima Quaresma?” Respondeu afirmativamente e acrescentou
logo em seguida: “O tipo de retiro de que gostaria neste momento seria uma boa
morte.” A morte, segundo Magee, era um dos assuntos constantes de suas
conversas. Seu papado seria de curta duração e ele seria substituído “pelo
estrangeiro”. E citou uma prece: “Senhor, concede-me a graça de aceitar a morte
que me abaterá.” No dia seguinte, Deus atendeu o pedido daquele homem modesto e
bondoso, cujo mais constante pedido, formulado milhares de vezes durante o seu
curto reinado, era: “Senhor, por favor, leva-me.” A magnitude de sua missão o
assustava.
Num dos últimos parágrafos
de Um ladrão na noite,
John Cornwell diz, mas não assegura: “João Paulo, quase com certeza, morreu de
embolia pulmonar, devido a uma condição de coagulabilidade anormal do sangue.
Necessitava de descanso e medicação monitorada. Se estes tivessem sido receitados,
ele, quase sem dúvida, teria sobrevivido. As advertências de uma doença mortal
estavam claras, à vista de todos. Pouco ou nada foi feito para socorrê-lo ou
salvá-lo.”
Como sempre, as doenças,
vistas em retrospecto, são bem mais fáceis de diagnosticar e de curar.
T. M.
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