Eduardo Leite, o Bacuri, soube antecipadamente de sua
morte. Seus torturadores, no cativeiro, mostraram para ele a Folha da Tarde do dia anterior.
O jornal afirmava que ele havia fugido
da prisão e metralhado.
Aconteceu na noite de quinta-feira [5/4/2012], na Casa
Fora do Eixo, em São Paulo, um programa histórico da #posTV de Lino Bocchini,
sobre o tema da cumplicidade entre a mídia brasileira e a ditadura militar de
1964–1985.
Reuniram-se Lino, a jornalista Thaís Barreto, do Núcleo da Memória, a
pesquisadoraBeatriz Kushinir e o jornalista e escritor Alípio Freire. Bia
talvez seja a principal pesquisadora brasileira das relações entre a mídia e a
ditadura, e é autora do livro Cães
de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988 (Boitempo, 2004), fruto de sua tese de
doutoramento na Unicamp, para a qual realizou mais de 60 entrevistas. Alípio
foi militante da Ala Vermelha, grupo dissidente do PCdoB. Preso pela Operação
Bandeirantes em 1969, esteve no Dops, no Presídio Tiradentes, na Casa de
Detenção do Carandiru e na Penitenciária do Estado de São Paulo. Trabalhou duas
vezes na empresa Folha, a
primeira em 1968 e depois de 1975 a 1979, período no qual testemunhou a
demissão de Cláudio Abramo a pedido do 2º Exército.
No programa, Beatriz explica que dois fatos serviram de
trampolim inicial para sua pesquisa. Os dez primeiros censores que chegaram a
Brasília para servir à ditadura eram jornalistas, o que por si só já coloca em
pauta a cumplicidade que norteia o livro. Em segundo lugar, na morte de Joaquim
Alencar de Seixas sob tortura, no DOI-Codi (SP), ocorrera um fato curioso: seu
filho Ivan Seixas, também
torturado pelo carniceiroDavid dos Santos Araújo (que trucidava seres humanos no
DOI-Codi com o codinome “Capitão Lisboa”), lera na Folha da Tarde a notícia da morte do pai 24 horas
antes de que ela ocorresse. Numa saída com os torturadores, Ivan vê a manchete
e, depois de regressar ao inferno do DOI-Codi, encontra seu pai ainda vivo. Ele
só seria assassinado um dia depois.
O episódio mostra – e há outros do mesmo tipo – que a colaboração
da Folha com a ditadura militar foi além do
apoio puro e simples, em editoriais golpistas antes de 31/3/1964 e em
sustentação ideológica depois de instalado o regime. Essa colaboração também
incluía a produção antecipada da mentira sobre a morte, manchetada, em geral,
como resultado de um tiroteio ou um acidente antes que o regime procedesse ao
assassinato da vítima. No momento do assassinato, a vítima já estava, perante
os olhos do público, “morta como resultado de tiroteio [ou acidente]”. A
morte de Eduardo Leite, o Bacuri, assassinado pela ditadura, também foi
anunciada antecipadamente, e de forma mentirosa, pela Folha. Seus torturadores
chegaram a lhe exibir, no cativeiro, os jornais que afirmavam que ele havia
fugido da prisão.
A pesquisa de Bia Kushnir e o testemunho de Alípio Freire também
confirmam a já conhecida história do empréstimo de carros do grupo Folha às operações do DOI-Codi. Os carros
serviram para albergar agentes da repressão em eventos de protesto contra a
ditadura, para que dali eles capturassem ativistas de esquerda com mais
facilidade. Os carros também foram usados para transportar presos políticos.
O programa de Lino, que é uma verdadeira aula de história do
Brasil, também tocou no tema da autocensura e da delação. Como exemplo desta
última, Alípio citou fato ocorrido no dia 7 de setembro de 1975, quando ele
trabalhava na TV Bandeirantes. Alípio afirmou que depois de editada sua matéria
sobre os desfiles, Roberto Corte Real, locutor do jornal do meio-dia, telefonou
para a Polícia Federal, que recebeu cópias do programa.
No esforço de desarquivar o Brasil, é importante também abrir a
caixa preta da imprensa, inclusive para que os jornalistas que hoje lá
trabalham possam saber um pouco mais sobre a história que lhes precede. Apesar
da pesquisa pioneira de Beatriz e dos vários testemunhos de militantes
antiditadura como Alípio, é impressionante como ainda sabemos pouco sobre esse
capítulo do Brasil.
A.
G.
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