Os
conservadores argentinos sonham com um papa próprio
Como em 2005, quando Ratzinger foi eleito, os conservadores
argentinos voltam a sonhar em ter um homem seu no Vaticano: o cardeal Jorge
Bergoglio. Mas o papel desempenhado pela Igreja argentina e pelo cardeal na
ditadura militar (1976-1983) torna quase impossível a escolha de um personagem
com semelhante currículo.
“Quando João Paulo 2º
morreu todos nos iludimos com a possibilidade de que nosso cardeal Bergoglio
assumisse como papa. Mas não aconteceu. Oxalá desta vez ocorra”, exclama sem
ruborizar uma conhecida jornalista local em uma das tantas transmissões
improvisadas da televisão argentina surpreendida, como o resto do mundo, com a
renúncia de Bento 16. “Deus não o permita”, responde o colunista Fernando
D’Addario.
Como ocorreu em 2005, quando foi eleito o papa Joseph Ratzinger,
os conservadores e ultramontanos argentinos voltam a se iludir com a
possibilidade de colocar seu homem no Vaticano: o cardeal Jorge Bergoglio. Mas
o papel desempenhado pela Igreja argentina e pelo citado cardeal em particular
durante a última ditadura militar (1976–1983) torna quase impossível que o
Vaticano opte por habilitar com a “fumaça branca” um personagem com semelhante
currículo. Salvo que “assim como nos anos de 1980 escolheram Karol Wojtyla para
canalizar religiosamente a luta do povo polonês (isto é, a do mundo ocidental e
cristão) contra o totalitarismo soviético”, sustenta D’Addario com acidez,
“agora escolham um papa argentino para salvar-nos do populismo gay e favorável
ao aborto que se expande como uma peste por estes pampas”.
A polêmica, que em apenas algumas horas voltou a impregnar
grande parte da imprensa argentina, trouxe à tona de novo a triste memória do
papel desempenhado pela Igreja local durante a última ditadura militar e suas
implicações no presente. Assim, enquanto o setor mais conservador e católico da
classe média local volta a sonhar em ter seu próprio papa, os organismos de
Direitos Humanos e as associações que agrupam os familiares dos 30 mil detidos
desaparecidos na última ditadora recordam que a Igreja não só colocou uma venda
nos olhos diante da matança organizada pelo Estado, como se fez de distraída
inclusive frente o assassinato de seus próprios sacerdotes, comprometidos com a
“opção pelos pobres’ e com a Teologia da Libertação que havia iluminado o
Concílio Vaticano 2º.
Uma prova da atualidade da polêmica é a recente decisão judicial
do tribunal que julgou na província de La Rioja o assassinato dos padres Carlos
de Dios Murias e Gabriel Longueville, ligados ao também assassinado bispo
Enrique Angelelli, uma das figuras emblemáticas da “Igreja comprometida” dos
anos setenta na Argentina. Nesta sentença inédita anunciada na semana passada
fala-se pela primeira vez da “cumplicidade” da Igreja Católica local com os
crimes cometidos pelos militares, ao mesmo tempo em que se assinala a
“indiferença” e a “conivência da hierarquia eclesiástica com o aparato repressivo”
dirigido contra os sacerdotes terceiro-mundistas. Chama a atenção, diz ainda a
sentença, que “ainda hoje persiste uma atitude resistência por parte de
autoridades eclesiásticas e de membros do clero ao esclarecimento dos crimes”.
Como ocorreu em 2005, enquanto por trás dos muros do Vaticano se
escolhia o sucessor de João Paulo 2º, a discussão pública leva os argentinos a
olhar para sua própria Igreja no espelho que mais os envergonha: do outro lado
da Cordilheira, a Igreja Católica tem outra cara para mostrar, já que sua
atitude frente à ditadura de Augusto Pinochet foi exatamente a oposta à adotada
pela hierarquia argentina. A polêmica transcende rapidamente o âmbito religioso
e se instala no cenário político cada vez mais radicalizado, que encontra os
partidários da política de Direitos Humanos promovida pelo governo kirchnerista
no caminho oposto ao dos conservadores que desejam encerrar os julgamentos
contra os responsáveis pelos crimes contra a humanidade executados pela
ditadura antes que os processos comecem a bater às portas dos cúmplices civis
do regime, o que já começou a acontecer.
Enquanto isso, o candidato em questão, o atual arcebispo de
Buenos Aires, Jorge Bergoglio, sonha em alcançar um papado impossível. Nascido
em 1936 e presidente da Conferência Episcopal durante dois períodos (cargo que
abandonou recentemente por doenças da idade), é difícil que o Vaticano se
arrisque a colocar no trono de Pedro um homem citado em vários processos
judiciais por sua cumplicidade com a ditadura e que conseguiu evitar seu
próprio julgamento por contra de influências e argúcias de advogados. Nada
disso impede, porém, os ultramontanos argentinos de sonhar com a possibilidade
de ter um papa em Roma que os ajude a acabar de uma vez por todas com um
governo que consideram o pior inimigo da Igreja Católica desde que o presidente
Juan Domingo Perón enfrentou-se de forma virulenta (incluindo a queima de
algumas igrejas) com a hierarquia católica no final de seu governo em 1955.
C. C.
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