12 de abril de 2010
Quando a publicação mais importante da Alemanha, a revista Der Spiegel, se refere ao
“papado falido” do seu compatriota Joseph Ratzinger (o mesmo termo que a
Inteligência norte-americana aplica aos Estados com vazio de poder nos quais
justifica sua intervenção), o primaz da Argentina e arcebispo de Buenos Aires,
cardeal Jorge Mario Bergoglio, empreende uma operação de lavagem
de sua imagem com a publicação de um livro autobiográfico.
O ostensivo propósito de El
jesuita, como o livro é intitulado, é defender seu desempenho como
provincial da Companhia de Jesus entre 1973 e 1979, manchado pelas denúncias
dos sacerdotes Orlando Yorio e Francisco Jalics, que ele entregou aos
militares. Ambos foram sequestrados cinco meses a partir de maio de 1976. Em
troca, as quatro catequistas e dois de seus esposos sequestrados dentro da
mesma operação nunca reapareceram. Entre eles, estavam Mônica Candelaria
Mignone, filha do fundador do CELS (Centro de Estudos Legais e Sociais), Emilio
Mignone, e Maria Marta Vázquez Ocampo, da presidente das Mães da Praça de Maio,
Martha Ocampo de Vázquez.
A reportagem é de Horacio Verbitsky, publicada no jornalPágina/12,
10/4/2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Ratzinger tem 83 anos e, segundo a Der Spiegel, muitas vozes pedem
a sua renúncia. O sacerdote Paolo Farinella escreveu na prestigiosa revista
italiana de filosofia MicroMega,
cujo diretor Paolo Flores D’Arcais participou de debates públicos sobre
filosofia com o Papa, que Bento 16 deveria pedir perdão aos crentes afetados
pela restrição do celibato, pelas condições nos seminários e pelos milhares de
casos de abusos de crianças e dizer-lhes: “Vou me retirar para um monastério e
passarei o resto dos meus dias fazendo penitência pelo meu fracasso como
sacerdote e como Papa”.
Ninguém se surpreenderia se, depois de beber uma tisana noturna
falhasse o coração de um homem entristecido e angustiado por causa das injustas
críticas que atingem seu desempenho como bispo da Baviera e não perdoam nem seu
amado irmão Georg. A revista alemã menciona o antecedente de Celestino 5º, um
Papa do século 13, que renunciou porque não se sentiu capaz de cumprir com suas
funções.
Se algo disso ocorrer, Bergoglio precisa de uma folha de serviços
limpa. Diante de uma pergunta sobre o Papa ideal, o presidente da Associação
Alemã da Juventude Católica, Dirk Tänzler, disse à Der Spiegel que preferiria que o escolhido tivesse
trabalhado em uma parte pobre da América do Sul ou em outra região atingida
pela pobreza, já que teria uma visão diferente do mundo. A compaixão pela
pobreza, compartilhada com a Sociedade Rural e a Associação Empresarial AEA, é
o nicho de oportunidade escolhido pelo episcopado sob a condução de Bergoglio.
O silêncio
É o cardeal que vincula seu descarrego com a eleição papal. Seu
livro narra que quando a vida de João Paulo 2º se apagava e o nome de Bergoglio figurava
nos prognósticos dos jornalistas especializados, “voltava a se agitar uma
denúncia jornalística publicada poucos anos atrás em Buenos Aires” e que, “às
vésperas do conclave, que devia escolher o sucessor do Papa polonês, uma cópia
de um artigo com a acusação, de uma série do mesmo autor, foi enviada aos
endereços de correio eletrônico dos cardeais eleitores com o propósito de
prejudicar as chances que eram outorgadas ao purpurado argentino”. Bergoglio diz em seu
livro que nunca responder à acusação “para não fazer o jogo de ninguém, não
porque tivesse algo para esconder”. Ele não explica porque mudou agora.
Na realidade, a primeira versão do episódio não se deve a nenhum jornalista, mas sim a Emilio Mignone. Em seu livro Iglesia y dictadura, editado em 1986, quando Bergoglio não era conhecido fora do mundo eclesiástico, Mignone exemplificou com seu caso “a sinistra cumplicidade” com os militares, que “se encarregaram de cumprir a tarefa suja de limpar o pátio interior da Igreja, com a aquiescência dos prelados”.
Segundo o fundador do Centro de Estudos Legais e Sociais (Cels), durante uma reunião com a Junta Militar em 1976, o então presidente da Conferência Episcopal e vigário castrense, Adolfo Servando Tortolo, concordou que, antes de deter um sacerdote, as Forças Armadas iriam avisar o bispo respectivo. Mignone acrescenta que, “em algumas ocasiões, a luz verde foi dada pelos próprios bispos. No dia 23 de maio de 1976, a Infantaria da Marinha deteve, no bairro de Bajo Flores, o presbítero Orlando Yorio e o manteve durante cinco meses na qualidade de desaparecido. Uma semana antes da detenção, o arcebispo [Juan Carlos] Aramburu havia lhe retirado sua licença ministerial, sem motivo nem explicação. Por diferentes expressões ouvidas por Yorio em sua detenção, fica claro que a Armada interpretou tal decisão e, possivelmente, algumas manifestações críticas de seu provincial jesuíta, Jorge Mario Bergoglio, como uma autorização para proceder contra ele. Sem dúvida, os militares haviam advertido a ambos acerca de sua suposta periculosidade”. Mignone se pergunta “o que a história irá dizer sobre esses pastores que entregaram suas ovelhas ao inimigo sem defendê-las nem resgatá-las”.
A chaga aberta
Eu publiquei a história nesta mesma coluna, no dia 25 de abril de 1999. Além da opinião de Mignone, a nota incluiu a opinião de quem foi sua colaboradora no CELS, a advogada Alicia Oliveira, que disse o que agora repete no livro: que seu amigo Bergoglio, preocupado com a iminência do golpe, temia pelo destino dos sacerdotes do assentamento e lhes pediu que saíssem dali. Quando foram sequestrados, ele tentou localizá-los e buscar sua liberdade, assim como ajudou os outros perseguidos.
Por causa dessa nota, Orlando Yorio se comunicou comigo do Uruguai, onde vivia. Por telefone e por e-mail, refutou as afirmações de Bergoglio e Oliveira. “Bergoglio não nos avisou do perigo iminente” e “também não tenho nenhum motivo para pensar que ele fez alguma coisa pela nossa liberdade, mas sim todo o contrário”, disse.
Os dois sacerdotes “foram libertados pela gestão de Emilio Mignone e a intercessão do Vaticano e não pela atuação de Bergoglio, que foi quem os entregou”, acrescentou Angélica Sosa de Mignone, Chela, a esposa durante meio século do fundador do CELS. Seus testemunhos foram incluídos na nota “La llaga abierta”, publicada no dia 09 de maio de 1999. Também foram transmitidas ali as posições de Bergoglio e do outro padre sequestrado naquele dia, Francisco Jalics.
Questão de estilo
Em seu livro, Bergoglio diz agora que Yorio e Jalics “estavam preparando uma congregação religiosa, e lhe entregaram o primeiro rascunho das regras aos bispos Pironio, Zazpe e Serra. Conservo a cópia que me deram”. Bergoglio também me entregou uma cópia. Expressa o tipo de dúvidas e de conflitos que foram comuns em um alto número de sacerdotes a partir do Concílio Vaticano II, com “a crise das congregações religiosas, os sinais dos tempos modernos, a coincidência com o sentir da busca dos jovens e a confirmação espiritual que sentimos em nosso modo de viver atual”.
O problema, nesse caso, era como compatibilizar “o estilo inaciano da vida religiosa” com “a vida moderna [que] pedia um estilo novo”. A ata acrescenta que as Congregações Apostólicas estão organizadas de modo que seus superiores “parecem se ocupar mais com as obras do que pela atenção espiritual de seus súditos”. Em troca, eles idealizam o modelo das fundações monásticas e propõem que “a comunidade se una em torno de uma busca espiritual e de um projeto de vida e não em torno de obras”. Isso apresenta uma “incompatibilidade pessoal” aos sacerdotes subordinados à disciplina de sua congregação.
Em sua carta ao padre Moura, Yorio menciona essa ata como resposta à pressão de Bergoglio para que dissolvessem a comunidade em Bajo Flores. Acrescenta que deixaram para Pironio, Zazpe e Serra “um esboço de estruturação de vida religiosa em caso de que não pudéssemos continuar na Companhia e fosse possível realizá-la fora”, o que não implica que eles quisessem sair dela. Em uma viagem posterior à Argentina, Pironio disse-lhe que não havia consultado o assunto em Roma, porque Bergoglio “havia ido lhe ver para lhe dizer que o padre geral era contrário a nós”. Zazpe respondeu que “o provincial andava dizendo que nos tiraria da Companhia”, e Serra comunicou-lhe que lhe retirariam a licença na arquidiocese porque Bergoglio havia comunicado “que eu estava saindo da Companhia”.
Segundo Bergoglio, o superior jesuíta Pedro Arrupe disse que eles deviam escolher entre a comunidade em que viviam e a Companhia de Jesus. “Como eles persistiram em seu projeto e o grupo se dissolveu, pediram a saída da Companhia”. Bergoglio acrescenta que a renúncia de Yorio foi aceita no dia 19 de março de 1976. “Diante dos rumores da iminência do golpe, eu lhes disse que tivessem muito cuidado. Lembro que lhes ofereci, se chegasse a ser conveniente para sua segurança, que viessem viver na casa provincial da Companhia”, disse Bergoglio. Afirma também que nunca acreditou que eles estivessem envolvidos em atividades subversivas. “Mas, por causa de sua relação com alguns padres das vilas de emergência, eles ficavam muito expostos à paranoia da caça às bruxas. Como permaneceram no bairro, Yorio e Jalics foram sequestrados durante um rastreamento”.
Papeizinhos
Bergoglio também nega ter aconselhado os funcionários de Culto da Chancelaria que rejeitassem a solicitação de renovação do passaporte de Jalics, que ele mesmo apresentou. SegundoBergoglio, o funcionário que recebeu o pedido lhe perguntou pelas “circunstâncias que precipitaram a saída de Jalics”. Ele diz que respondeu: “Ele e seu companheiro são acusados de serem guerrilheiros e não tinham nada a ver”.
O cardeal acrescenta que “o autor da denúncia contra mim revisou o arquivo da Secretaria de Culto, e a única coisa que mencionou foi que encontrou um papelzinho daquele funcionário no qual ele havia escrito que eu lhe disse que fossem acusados como guerrilheiros. Eu havia entregado essa parte da conversa, mas não a outra na qual eu lhe indicava que os sacerdotes não tinham nada a ver. Além disso, o autor da denúncia ignora minha carta, na qual eu colocava minha cara por Jalics e fazia o pedido”.
Não foi nada disso. Em notas publicadas aqui e em meus livros El Silencio e Doble juego, narrei a história completa e publiquei todos os documentos, começando pela carta de cuja omissão Bergoglioreclama. Depois, segue a recomendação do funcionário de Culto que o recebeu, Anselmo Orcoyen: “Em atenção aos antecedentes do requerente, esta Direção Nacional é da opinião de que não deve aceder”.
O terceiro documento é o definitório. Esse papelzinho, assinado por Orcoyen, diz que Jalics tinha atividade dissolvente em comunidades religiosas femininas e conflitos de obediência, que esteve com Yorio na ESMA (detido, diz, em vez de sequestrado) por “suspeito contato com guerrilheiros”. O ponto mais interessante é o seguinte, porque remete a intimidades da Companhia de Jesus, vistas a partir da ótica de Bergoglio, que não tinha nenhuma necessidade de confiar ao funcionário da ditadura: “Viviam em uma pequena comunidade que o Superior Jesuíta dissolveu em fevereiro de 1976 e se negaram a obedecer solicitando a saída da Companhia em 19/03”.
Ele acrescenta que Yorio foi expulso da Companhia e que “nenhum bispo da Grande Buenos Aires quis lhe receber”. A “Nota Bene” final é inegável: Orcoyen diz que esses dados lhe foram repassados “pelo padre Jorge Mario Bergoglio, firmante da nota, com especial recomendação de que não se fizesse o que é solicitado”.
Não duvido nada que Bergoglio seja eleito Papa – ele tem o perfil ideal para o cargo.
***
Bergoglio: Novos testemunhos sobre Bergoglio e a ditadura argentina
18 de abril de 2012
O papel do agora cardeal Bergoglio, da Argentina, no desaparecimento de sacerdotes e o apoio à repressão ditatorial é confirmado por cinco novos testemunhos. Falam um sacerdote e um ex-sacerdote, uma teóloga, um integrante de uma fraternidade leiga que denunciou no Vaticano o que acontecia na Argentina em 1976 e um leigo que foi sequestrado junto com dois sacerdotes que não reapareceram.
A reportagem é de Horacio Verbitsky, publicada no jornalPágina/12, 18/4/2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Cinco novos testemunhos, oferecidos de forma espontânea a partir da notícia “Seu passado o condena”, confirmam o papel do agora cardeal Jorge Bergoglio na repressão do governo militar sobre as fileiras da Igreja Católica que ele hoje preside, incluindo o desaparecimento de sacerdotes. As testemunhas são uma teóloga que durante décadas deu catequese em colégios do bispado de Morón, o ex-superior de uma fraternidade sacerdotal que foi dizimada pelos desaparecimentos forçados, um integrante da mesma fraternidade que denunciou os casos ao Vaticano, um sacerdote e um leigo que foram sequestrados e torturados.
Teóloga de minissaia
Dois meses depois do golpe militar de 1976, o bispo de Morón, Miguel Raspanti, tentou proteger os sacerdotes Orlando Yorio e Francisco Jalics porque temia que fossem sequestrados, masBergoglio se opôs. Assim indica a ex-professora de catequese em colégios da diocese de Morón, Marina Rubino, que nessa época estudava teologia no Colégio Máximo de San Miguel, ondeBergoglio vivia. Por essa circunstância, ela conhecia a ambos. Além disso, ela havia sido aluna de Yorio e Jalics e sabia do risco que eles corriam. Marina decidiu dar seu testemunho depois de ler a nota sobre o livro de descargo de Bergoglio.
Marina Rubino vive em Morón desde sempre. No Colégio do Sagrado Coração de Castelar, ela dava catequese às crianças e formava os pais, o que lhe parecia mais importante. “Uma vez por mês, nos reuníamos com eles. Era um trabalho muito bonito. Essa experiência durou 15 anos”. Também deu cursos de iniciação bíblica “em todos os lugares não turísticos da Argentina. Tínhamos uma publicação, com comentários aos textos dos domingos. Queríamos que as comunidades tivessem elementos para pensar”. Desde que se aposentou, dá aulas de tecelagem em centros culturais, sociedades de fomento ou em casas.
Ela não quis ingressar no seminário de Villa Devoto porque não lhe interessava a formação tomista, mas sim a Bíblia. Em 1972, começou a estudar teologia na Universidad del Salvador. A carreira era cursada no Colégio Máximo de San Miguel. No primeiro ano, teve como professor Francisco Jalics e, no segundo, Orlando Yorio. Enquanto estudava, coordenava a catequese no colégio Sagrado Coração de Castelar, onde também estava a religiosa francesa Léonie Duquet. “Eram tempos difíceis. Por fazer no colégio uma opção pelos pobres levando a sério o Concílio Vaticano 2º e a reunião do Celam de Medellín, perdemos a metade dos alunos. Mas mantivemos essa opção e continuamos formando pessoas mais abertas à realidade e ao compromisso com os mais necessitados, defendendo que a fé tem que fortalecer essas atitudes, e não as contrárias”.
O bispo era Miguel Raspanti, que então tinha 68 anos e havia sido ordenado em 1957, nos últimos anos do reinado de Pio 13. Era um homem bem-intencionado que fez todos os esforços para se adaptar às mudanças do Concílio, do qual participou. Depois do “cordobazo” de 1969, repudiou as estruturas injustas do capitalismo e estimulou o compromisso com a “libertação de nossos irmãos necessitados”. Mas o problema mais grave que ele pôde identificar em Morón foi o aumento dos impostos sobre o pequeno comerciante e o proprietário da classe média. “Muitas vezes, foi preciso discutir e defender essas opções no bispado, e Dom Raspanti costumava terminar as entrevistas dizendo-nos que, se acreditávamos que era preciso fazer esta ou aquela coisa, se estávamos convencidos, ele nos apoiava”, lembra Marina. Suas palavras são acompanhadas com atenção por seu esposo, Pepe Godino, um ex-padre de Santa Maria, Córdoba, que integrou o Movimento de Sacerdotes para o Terceiro Mundo.
Marina cursava teologia em San Miguel das 8h30min às 12h30min. Não haviam lhe dado a bolsa, porque era mulher, mas, como era a coordenadora de catequese em um colégio do bispado, Raspanti intercedeu e obteve que uma entidade alemã se encarregasse dos custos dos seus estudos. Também não quiseram lhe dar o título quando se formou em 1977. O diretor da teologia, José Luís Lazzarini, lhe disse que havia um problema, que não haviam se dado conta de que ela era mulher. Marina partiu em busca de quem a havia recebido ao ingressar, o jesuíta Victor Marangoni:
“Quando você me viu pela primeira vez, você se deu conta de que eu era mulher ou não?”
“Sim, claro, por quê?”, respondeu atordoado o vice-reitor diante dessa forte mulher de minissaia.
“Porque Lazzarini não quer me dar o título.”
Marangoni se encarregou de reparar esse absurdo. Marina tem seu título, mas a entrega oficial nunca ocorreu.
A desproteção
Em um meio-dia, ao sair de seus cursos, “encontrei Dom Raspanti de pé no hall da entrada, sozinho. Não sei por que o mantinham ali esperando. Estava muito silencioso. Perguntei se estava esperando por alguém, e ele me disse que sim, o padre provincial Bergoglio. Tinha o rosto desfigurado, pálido, acreditei que estava mal de saúde. Cumprimentei-o, perguntei se ele se sentia bem e o convidei a passar para uma salinha que havia no hall”.
“Não, não me sinto mal, mas estou preocupado”, respondeu Raspanti.
Marina diz que tem uma memória fotográfica daquele dia. Ela fala com voz calma, mas se percebe a paixão em seus olhos grandes e expressivos. Pepe a olha com ternura.
“Me impressionou ver Raspanti sozinho, ele que sempre ia com o seu secretário”, diz. Marina sabia que seus professores Jalics e Yorio e um terceiro jesuíta que trabalhava com ela no colégio de Castelar, Luís Dourron, haviam pedido para passar para a diocese de Morón. Yorio, Jalics, Dourron e Enrique Rastellini, que também era jesuíta, viviam em comunidade desde 1970, primeiro em Ituzaingó e depois no Barrio Rivadavia, junto à Gran Villa do Bajo Flores, com conhecimento e aprovação dos sucessivos provinciais da Companhia de Jesus, Ricardo Dick O’Farrell e Bergoglio.
“Eu lhe disse que Orlando e Francisco haviam sido meus professores e que Luís trabalhava conosco na diocese, que eram irrepreensíveis, que não duvidasse em recebê-los. Todos estávamos inclinados para que pudessem vir para Morón. Nenhum dos que conheciam a situação se opunha. Raspanti me disse que era sobre isso que vinha falar com Bergoglio. Já havia recebido Luís, mas precisava de uma carta na qual Bergoglio autorizasse a passagem de Yorio e Jalics”.
Marina entendeu que era uma simples formalidade, mas Raspanti lhe esclareceu que a situação era mais complicada. “Com as más referências que Bergoglio havia mandado, ele não podia recebê-los na diocese. Estava muito angustiado porque, nesse momento, Orlando e Francisco não dependiam de nenhuma autoridade eclesiástica e me disse:
“Não posso deixar dois sacerdotes nessa situação, nem posso recebê-los com o relatório que ele me mandou. Venho para lhe pedir que simplesmente os autorize e que retire esse relatório que dizia coisas muito graves.”
Qualquer um que ajudasse a pensar era guerrilheiro, comenta Marina. Acompanhou seu bispo até que Bergoglio o recebeu e depois foi embora. Ao sair, viu que o carro de Raspanti também não estava no estacionamento. “Deve ter vindo de ônibus, para que ninguém o seguisse. Queria que a coisa ficasse entre eles dois. Estava fazendo o impossível para dar-lhes proteção”.
A teóloga acrescenta que a angústia de Raspanti lhe impressionou, porque, “mesmo que ele não pudesse ser qualificado de bispo progressista, sempre nos defendeu, defendeu os padres questionados da diocese, levava a dormir na casa episcopal aqueles que corriam mais risco e nunca nos proibiu de fazer ou dizer algo que considerássemos fruto do nosso compromisso cristão. Como bom salesiano, se comportava como uma galinha choca com seus padres e seus leigos, abrigava, cuidava, mesmo que não estivesse de acordo. Eram pontos de vista diferentes, mas ele sabia escutar e aceitava muitas coisas”.
Um desses padres é Luís Piguillem, que havia sido ameaçado. Ele voltava de bicicleta quando se topou com uma barreira policial que impedia a passagem. Insistiu que queria passar, porque sua casa ficava no bairro, e um policial lhe disse:
“Você vai ter de esperar porque estamos fazendo uma operação na casa do padre.”
Piguillem deu meia volta com sua bicicleta e se afastou sem olhar para trás. Dali, foi para o bispado de Morón, onde Raspanti lhe deu refúgio. Os militares disseram que ele havia se escondido debaixo das saias do bispo. Mas não se atreveram a ir buscá-lo ali.
“Raspanti era consciente do risco que Yorio e Jalics corriam?”
“Sim. Disse que tinha medo de que desaparecessem. Dois sacerdotes não podem ficar no ar, sem um responsável hierárquico. Poucos dias depois, soubemos que eles os haviam levado.”
De Córdoba a Cleveland
Outro testemunho recolhido a partir da publicação do domingo é o do sacerdote Alejandro Dausa, que, na terça-feira 3 de agosto de 1976, foi sequestrado em Córdoba, quando era seminarista da Ordem dos Missionários de Nossa Senhora de La Salette. Depois de seis meses nos quais foi torturado pela polícia cordobesa no Departamento de Inteligência D2, ele pôde viajar para os Estados Unidos, aonde o responsável do seminário já havia chegado, o sacerdote norte-americano James Weeks, por quem o governo de seu país se interessou. Neste ano, irá se realizar em Córdoba o julgamento daquele episódio, cujo principal responsável é o general Luciano Menéndez.
Ao chegar aos EUA, soube por órgãos de direitos humanos que Jalics se encontrava em Cleveland, na casa de uma irmã. Dausa e os outros seminaristas, que estavam iniciando o noviciado, convidaram-lhe para dirigir dois retiros espirituais. Ambos foram realizados em 1977, um em Altamont (Estado de Nova Iorque) e outro em Ipswich (Massachusetts). Dausa lembra: “Como é natural, conversamos sobre os sequestros respectivos, detalhes características, antecedentes, sinais prévios, pessoas envolvidas etc. Nessas conversas, ele nos indicou que Bergoglio os havia entregado e denunciado”.
Na década seguinte, Dausa trabalhava como padre na Bolívia e participava dos retiros anuais da La Salette na Argentina. Em um deles, os organizadores convidaram Orlando Yorio, que nessa época trabalhava em Quilmes. “O retiro foi em Carlos Paz, Córdoba, e também nesse caso conversamos sobre a experiência do sequestro. Orlando indicou o mesmo que Jalics sobre a responsabilidade de Bergoglio”.
Os assuncionistas
Yorio e Jalics foram sequestrados no dia 23 de maio de 1976 e conduzidos à Esma [Escola de Mecânica da Armada], onde um especialista em assuntos eclesiásticos que conhecia a obra teológica de Yorio lhes interrogou. Em um dos interrogatórios, perguntou-lhe sobre os seminaristas assuncionistas Carlos Antônio Di Pietro e Raul Eduardo Rodriguez Ambos eram colegas de Marina Rubino no curso de teologia de San Miguel e desenvolviam trabalhos sociais no bairro popular La Manuelita, de San Miguel, onde viviam e atendiam à capela Jesus Operário. Dali, foram sequestrados dez dias depois que os dois jesuítas, no dia 04 de junho de 1976, e levados para a mesma casa operativa que Yorio e Jalics. Na metade da manhã, Di Pietro telefonou para o superior assuncionista Roberto Favre e lhe perguntou pelo sacerdote Jorge Adur, que vivia com eles em La Manuelita.
“Recebemos um telegrama para ele e temos que lhe entregar”, disse.
Desse modo, conseguiu que a Ordem se pusesse em movimento. O superior Roberto Favre apresentou um recurso de habeas corpus, que não obteve resposta. Adur conseguiu sair do país, com a ajuda do núncio Pio Laghi, e se exilou na França. Voltou de forma clandestina em 1980, convertido em capelão do autodenominado “Exército Montonero” e foi preso-desaparecido no trajeto para o Brasil, onde procurava se encontrar com o Papa João Paulo II.
O mesmo caminho do exílio foi seguido por um dos detidos na batida policial do bairro La Manuelita, o então estudante de medicina e hoje médico Lorenzo Riquelme. Quando recuperou sua liberdade, a Fraternidade dos Irmãozinhos do Evangelho lhe deu hospitalidade em sua casa portenha da rua Malabia. Em comunicações desde a França com quem era então o superior dos Irmãozinhos do Evangelho, Patrick Rice, Riquelme disse que quem o denunciou foi um jesuíta do Colégio de San Miguel, que era por sua vez capelão do Exército. Ele está convencido de que esse sacerdote presenciou as torturas que lhe foram aplicadas, em Campo de Mayo, acredita ele.
O amolecedor
Também em consequência da notícia do domingo, um fundador da fraternidade leiga dos Irmãozinhos do Evangelho Charles de Foucauld, Roberto Scordato, aceitou narrar seu conhecimento do caso. Entre o fim de outubro e o começo de novembro de 1976, Scordato se reuniu em Roma com o cardeal Eduardo Pironio, que era prefeito da Congregação para os Religiosos do Vaticano, e lhe comunicou o nome e o sobrenome de um sacerdote da comunidade jesuíta de San Miguel que participava das sessões de tortura em Campo de Mayo com o papel de “amolecer espiritualmente” os detidos.
Scordato pediu-lhe que transmitisse ao superior geral Pedro Arrupe, mas ignora o resultado de sua gestão, se é que teve algum. Consultado para esta nota, Rice, que também foi sequestrado e torturado nesse ano, disse que isso não teria sido possível sem a aprovação do padre provincial. Rice e Scordato acreditam que esse jesuíta tinha o sobrenome González, mas, a 34 anos de distância, não lembra com certeza.
Fúria
Como todas as vezes em que seu passado o alcança, Bergoglioatribui a divulgação de seus atos ao governo nacional. Nesta semana, ele reagiu com fúria durante a homilia que pronunciou em uma missa para estudantes. Naquilo que seu porta-voz descreveu como “uma mensagem para o poder político”, ele disse que “não temos direitos a mudar a identidade e a orientação da Pátria”, mas sim a “projetá-la para o futuro em uma utopia que seja continuidade com aquilo que nos foi dado”, que os jovens não têm outro horizonte do que comprar drogas e que os dirigentes procuram ascender, aumentar o caixa e promover os amigos.
Com esse ânimo irascível, ele inaugurará em San Miguel a primeira assembleia plenária do Episcopado de 2010.
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A igreja argentina e a ditadura militar
14/10/2007
“O que o julgamento [de Von Wernich] permitiu foi jogar verdade sobre o que aconteceu e provar, de acordo com as exigências da Justiça, o fato inegável das responsabilidades institucionais por parte da Igreja católica argentina nas violações aos direitos humanos”, escreve Washington Uranga.
Na opinião de Uranga, “a condenação do sacerdote Von Wernich por genocídio constitui provavelmente a mancha mais grave da Igreja católica argentina em toda a sua história”. Mas, essa condenação “de pouco servirá se os responsáveis eclesiásticos não virem isto como um ensinamento dirigido à instituição.
Seguramente, a sociedade teria outra imagem da Igreja argentina se, recuperando o sentido espiritual da tradição cristã sobre a reconciliação, os bispos optassem por assumir institucionalmente as culpas, agradecer pela verdade e pela justiça, pedir perdão e procurar a reparação dos males causados às vítimas”, conclui.
Segue a íntegra do artigo de Washington Uranga publicado noPágina/12, 10/10/2007. A tradução é do Cepat.
O julgamento e a condenação do sacerdote católico Christian Federico Von Wernich não podem ser lidos apenas como uma sanção da sociedade contra um ministro religioso, pretendendo que o ex-capelão da Polícia de Buenos Aires agiu de forma totalmente isolada e com desconhecimento de seus superiores eclesiásticos.
Tampouco seria justo englobar na sentença toda a instituição eclesiástica, em cujo seio também se abrigam algumas das vítimas do padre repressor, dos policiais e militares que ele acompanhou e cujo agir justificou do ponto de vista do discurso ideológico e religioso.
O que o julgamento permitiu foi jogar verdade sobre o que aconteceu e provar, de acordo com as exigências da Justiça, o fato inegável das responsabilidades institucionais por parte da Igreja católica argentina nas violações aos direitos humanos.
Trata-se das mesmas responsabilidades institucionais das quais os bispos tentaram se esquivar antes e agora ao reafirmarem o que foi dito pela Comissão Permanente do Episcopado no dia 8 de março de 1995 num comunicado sobre “a repressão violenta durante o governo militar”.
Na época sustentaram, e agora reiteram, que “se algum membro da Igreja, qualquer que foi sua condição, apoiou com sua recomendação ou cumplicidade algum desses fatos (a repressão violenta), agiu sob sua responsabilidade pessoal, errando ou pecando gravemente contra Deus, a humanidade e a sua consciência”.
Com a mesma intenção se recorda agora o insuficiente reconhecimento feito no dia 8 de setembro de 2000 em Córdoba, dentro da celebração do Congresso Eucarístico Nacional.
Nessa ocasião os bispos pediram perdão “pelos silêncios responsáveis e pela participação efetiva de muitos de (seus) teus filhos em tanto desencontro político, no desrespeito às liberdades, na tortura e delação, na perseguição política e na intransigência ideológica, nas lutas e nas guerras, e na morte absurda que ensanguentaram nosso país”.
“A Igreja não erra, mas seus filhos, sim”. Esse é o raciocínio utilizado pelos bispos.
O que dizer então do bispo Victorio Bonamín, que, sendo pró-vigário castrense, alentou o golpe de Estado com uma pergunta: “Quererá Cristo que algum dia as Forças Armadas estejam além de sua função?”
Para sustentar logo que “o Exército está expiando a impureza de nosso país” e que “os militares foram purificados no Jordão do sangue para colocarem-se à frente de todo o país”.
E a própria Conferência Episcopal, num documento de 15 de maio de 1976, sustentava que “seria errar” contra o bem-comum se se pretendesse “que os organismos de segurança agissem com pureza química de tempos de paz, enquanto diariamente corre sangue”.
O presidente da Conferência Episcopal em tempos de ditadura, Adolfo Servando Tortolo, sempre se mostrou um entusiasta defensor do regime ditatorial e justificou seus métodos da mesma maneira que o fez o arcebispo de La Plata, Antônio Plaza, ou o de San Luís, Juan Laise, para mencionar apenas alguns.
A instituição dos capelães militares e policiais, injustificável para muitos do ponto de vista pastoral, converteu-se numa ferramenta ideológico-religiosa para legitimar os maus-tratos.
Não houve nesse momento, como também não há agora, assunção institucional das responsabilidades.
Alguns bispos (com honrosas e valiosas exceções como Miguel Hesayne, Esteban de Nevares e Jorge Novak) tiveram que sofrer o isolamento de seus pares por seu compromisso na defesa dos direitos humanos e pela autocrítica em relação à ação institucional da Igreja sobre o próprio tema.
Longe de realizar a missão religiosa que lhe foi encomendada como capelão, Von Wernich agiu como parte integrante das forças de repressão comandadas pelo general Ramón Camps.
A condenação do sacerdote Von Wernich por genocídio constitui
provavelmente a mancha mais grave da Igreja católica argentina em toda a sua
história. Mas de pouco servirá se os responsáveis eclesiásticos não virem isto
como um ensinamento dirigido à instituição. Seguramente, a sociedade teria
outra imagem da Igreja argentina se, recuperando o sentido espiritual da
tradição cristã sobre a reconciliação, os bispos optassem por assumir
institucionalmente as culpas, agradecer pela verdade e pela justiça, pedir
perdão e procurar a reparação dos males causados às vítimas. Esse é,
definitivamente, o sentido cristão da reconciliação. Muito longe daquele que
pretendeu dar-lhe Von Wernich na intervenção do julgamento que o condenou.
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