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segunda-feira, 22 de abril de 2013

O ‘príncipe’ venezuelano é vanguarda organizada


Nem tudo é o que parece. Muito menos quando se trata de processos sociais. A Revolução Bolivariana parecia, para amplos setores da esquerda latino-americana, um processo que só poderia avançar. Ameaças somente poderiam vir de ações violentas, do golpismo conhecido da CIA e das oligarquias venezuelanas aliadas ao imperialismo. Pelas urnas nem um retrocesso parecia possível.



Mas a morte prematura de Chávez - perda dolorosa para os povos da América Latina – trouxe ao cenário um resultado eleitoral um pouco diferente do que se imaginava, uma votação bastante apertada que deu a Maduro a vitória por uma margem menor do que 2%. O susto que levamos, todos (ou alguém esperava por isso?), ao ver a pequena diferença na votação para Maduro e para o direitista Capriles – que chegou a vencer em oito das 24 províncias da Venezuela – precisa agora ser objeto de cuidadosa e continuada análise. 

Alguns analistas mais apressados logo anunciaram a pequena margem que deu a vitória a Maduro como uma "derrota", ou um "retrocesso". Nada mais falso. Antes de ser um "mau resultado" eleitoral, a vitória do candidato chavista, ainda que por pequena margem, demonstra os acertos da condução dada por Chávez ao processo revolucionário desde que se tornou a liderança principal de seu país. Também aponta os caminhos a serem pavimentados pela nova liderança da revolução.

Neste ensaio resgataremos algumas reflexões teóricas de Antônio Gramsci sobre a obra "O Príncipe" de Maquiavel que, segundo compreendemos, podem servir de base teórica para o entendimento do processo venezuelano até aqui e indicar alguns elementos para sua consolidação e desenvolvimento nesta nova fase que se inaugura com a eleição de Nicolás Maduro.

A obra de Maquiavel foi concebida com um objetivo bem delimitado: lançar bases para um movimento de unificação do Estado italiano. Conforme a formulação de Gramsci, "O Príncipe" poderia ser estudado como uma exemplificação histórica de um mito, isto é, "de uma ideologia política que se apresenta não como fria utopia, nem como raciocínio doutrinário, mas como uma criação da fantasia concreta que atua sobre um povo disperso e pulverizado para despertar e organizar a sua vontade coletiva*". O "Príncipe" não existia na realidade histórica, era uma pura abstração doutrinária, o símbolo do chefe, do condottieri ideal. Maquiavel lançava um "manifesto político" que visava à invocação de um príncipe "realmente existente" capaz de levar um povo à fundação do novo Estado.
 

Se o "príncipe" de Maquiavel poderia ser personificado por um soberano - ainda que necessariamente representante de uma "vontade nacional e popular" - o "moderno príncipe", de Gramsci, o personagem necessário à construção de uma sociedade socialista, já não poderia mais ser uma pessoa determinada, mas um organismo: um partido. Em suas palavras, "o moderno príncipe, o mito-príncipe, não pode ser uma pessoa real, um indivíduo concreto; só pode ser um organismo: um elemento complexo de sociedade no qual já se tenha iniciado a concretização de uma vontade coletiva reconhecida e fundamentada parcialmente na ação.
 

Este organismo já é determinado pelo desenvolvimento histórico, é o partido político: a primeira célula na qual se aglomeram germes de vontade coletiva que tendem a se tornar universais e totais." Esse partido precisaria ser forte o suficiente para fazer a propaganda ideológica e conquistar a hegemonia política e cultural, sem a qual não há possibilidade de se avançar sobre as bases da velha sociedade.

O partido conforme concebido na teoria gramsciana deveria ter uma forte disciplina interna, tornando-se ele próprio o gérmen da sociedade futura. Do contrário não seria mais do que um somatório de anseios e projetos individuais. As vontades dos indivíduos, quando diante de um fato causador de grande comoção social - como uma crise ou uma guerra, podem ser conduzidas para um único objetivo. Mas, assim que cessem as causas mais imediatas - ou assim que desapareça a personalidade unificadora do líder - a tendência é que os anseios sociais sejam pulverizados em um sem número de vontades desconexas. Nas palavras de Gramsci, "a vontade coletiva, formada elementarmente (... ) deixará de existir, pulverizando-se numa infinidade de vontades individuais, que em virtude da fase positiva seguem direções diversas e contrastantes (...). Não pode existir destruição, negação, sem uma implícita construção, afirmação, e não em sentido 'metafísico', mas praticamente, isto é, politicamente, como programa de partido".
 

Essa preocupação de Gramsci esteve presente na condução política de Chávez. O gênio político do líder venezuelano ficou demonstrado na condução que deu, em conjunto com seus partidários, ao processo. Figura de carisma, amado pelo povo, o presidente sabia que a revolução não teria futuro se todas as vitórias estivessem baseadas unicamente em sua capacidade de despertar a paixão das massas, combinada ao desgaste político da burguesia venezuelana, incapaz de dar soluções aos graves problemas sociais do país.

Para dar consistência ao processo de conquista do poder real - que ele compreendia estar além de uma vitória eleitoral - a vanguarda liderada por Chávez empenhou-se na formação de um partido que expressasse e organizasse a vontade coletiva - o PSUV. Após a primeira vitória eleitoral, passou-se a priorizar as vitórias municipais e estaduais, ampliando vertiginosamente a influência do poder central e garantindo, em eleições posteriores, a formação da maioria no parlamento - essencial ao avanço das reformas propostas pelo poder central. Após a tentativa fracassada do golpe de 11 de abril de 2002, Chávez soube aproveitar a imensa comoção social e o apoio incondicional de amplos setores - inclusive das forças armadas, sem as quais talvez o retorno do presidente no 13 de abril não pudesse ter sido garantido - para a convocação de uma constituinte, da qual resultou a Constituição Bolivariana, que garantiu a democratização dos poderes legislativo e judiciário e a efetiva nacionalização do petróleo - principal meio de distribuição imediata de renda e fonte de financiamento dos programas de saúde e erradicação do analfabetismo.
 

A questão que se coloca agora para essa vanguarda do processo bolivariano é alcançar a hegemonia, sem a presença marcante de seu líder máximo. O "chavismo" mostrou-se forte o suficente para vencer as eleições presidenciais sem a presença de sua principal expressão pública. Mas a ampliação da votação do candidato da direita, Henrique Capriles, demonstra que alguns setores não identificados com as elites econômicas ainda não estavam definitivamente ganhos para o projeto nacional-popular capitaneado por Chávez, chegando a desconfiar da figura que se apresentou como sucessor - Maduro.
 

A hegemonia política e cultural do "chavismo" só poderá se dar de maneira definitiva se lograr ultrapassar os obstáculos materiais que se colocam. Estes obstáculos se revelam na persistência, primeiramente, de determinados grupos sociais reacionários, ligados principalmente ao latifúndio, ao capital financeiro e a um certo "equilíbrio externo" promovido pela presença hegemônica do imperialismo estadunidense. Toda a história mostra o esforço permanente das classes tradicionais para impedir a formação de uma vontade coletiva transformadora.
 

Dito de outra forma, é preciso debruçar-se sobre dois pontos fundamentais: primeiramente, a formação de uma vontade coletiva nacional-popular, da qual o chavismo é ao mesmo tempo o organizador e a expressão ativa e atuante. Em segundo lugar, uma reforma intelectual e moral. Na própria formulação de Gramsci, "o Moderno Príncipe [o partido, as forças sociais transformadoras] deve e não pode deixar de ser o propagandista e o organizador de uma reforma intelectual e moral, o que significa criar o terreno para um desenvolvimento ulterior da vontade coletiva nacional-popular no sentido de alcançar uma forma superior e total de civilização".

Mas é possível haver reforma cultural - o definitivo envolvimento político das camadas sociais ainda não totalmente absorvidas pelo projeto bolivariano - sem uma precedente reforma econômica? Eis por que, segundo Gramsci, "uma reforma intelectual e moral não pode deixar de estar ligada a um programa de reforma econômica", o qual é "exatamente o modo concreto através do qual se apresenta toda reforma intelectual e moral".

Estes parecem ser os dois pontos cruciais que se colocam para a vanguarda do processo revolucionário venezuelano - primeiramente: avançar nas reformas estruturais de modo a elevar o nível de vida das massas, contemplar os setores médios cujo modo de vida ainda não foi positivamente atingido pelas políticas implementadas nas duas últimas décadas e golpear de maneira profunda o poderio econômico dos grupos ligados ao capital financeiro e ao latifúndio e, em segundo lugar, avançar na conquista da hegemonia político-cultural por meio do fortalecimento dos partidos que estão na vanguarda do processo (PSUV e PCV) e da conquista dos espaços de difusão do pensamento - a mídia, as universidades e os movimentos sociais organizados.

O sucesso da revolução na Venezuela é fundamental para os processos políticos em todos os países latino-americanos, uma vez que abala definitivamente o controle exercido de fora pelo imperialismo - ao qual estão associadas as elites econômicas da América Latina. Os sucessos logrados até o momento e os mecanismos pelos quais se garantiu a passagem de uma vitória eleitoral baseada na insatisfação generalizada (e não orientada) e no carisma de uma liderança para um movimento político organizado no sentido de constituir um bloco histórico hegemônico podem servir, inclusive, de paradigma para os processos políticos nos demais países do continente.
 


A força do chavismo foi demostrada na sua capacidade de vencer as eleições sem a presença marcante de Chávez e resistir ao golpe que se tentou em seguida - dificilmente as forças de esquerda teriam a mesma capacidade de resistência no Brasil, por exemplo, onde a governabilidade tem dependido muito mais das concessões aos grupos econômicos e políticos do que da capacidade de mobilização política das massas, além do fato de que as forças armadas são ainda profundamente ligadas às forças conservadoras. Sua hegemonia dependerá da capacidade de superar os obstáculos que se apresentaram com muita clareza no último sufrágio.



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